|
Fazia mais de 15 anos que não ouvia nem falar nem uma palavra do meu amigo e intelectual João Barcellos. Os seus textos polêmicos, em jornais e revistas portuguesas e internacionais, fizeram-me estudar o tronco da linhagem Celta solta no mundo. A primeira vez que oivi sobre os Kelts (ou Celtas), no âmbito da sua pujança minho-galaico, foi numa pequena mas vigorosa e densa palestra de João, em 1973, então, um jovem entre poetas e cinéfilos e políticos, no norte de Portugal, em luta cultural contra o fanatismo religioso-policialesco do Estado Novo salazarista. Era um grupo que usava as praias das vilas de Apúlia e de Ofir para os encontros. Nessa época, eu terminara o curso de Psiquiatria, e estava a visitar alguns institutos deste segmento médico quando, por amores de uma estagiária, conheci Barcelos, a velha cidade do "galo de barro". No café-esplanada, sobre o Rio Cávado, conheci o João - poeta às voltas com "o ser e o não ser português dentro de um Portugal que lhe negava a Liberdade de estar", opinião filosoficamente política que lhe ouvi, ali mesmo. Depois, entre duas intervenções suas na roda de amigos (e já ali era ele uma pessoa à frente da sua própria geração, um tanto carismático), entendi que tudo que expressava o fazia em síntese. Ele ria daquilo que, em mim, chamava de "labirinto teuto-árabe" (pai árabe e mãe alemã, mas a viver entre a Áustria e Portugal). Chuva e frio e vento faziam da segunda quinzena de Janeiro, neste
1998, uma época não muito diferente do tempo de sempre na Europa. A cidade de Viena
estava um encanto. Como sempre. No hall do hotel uma velha senhora, bonita, com um
cálice de Porto na mão esquerda, tentava falar ao telefone com alguém no Brasil.
Demorava a ligação. "- Ôba, João Barcellos. Evoé, poeta!" disse ela com um
sorriso deveras muito bonito. "Não pode ser!" disse para mim mesmo. "Não
ouvi bem" pensei. "- Aguardo o teu fax com a palestra. Mais logo ligo para a
Joane" ouvi ela dizer, ainda. Recordei que no início dos Anos 80 ele vivenciava o amor
livre com uma irlandesa chamada Joanne (exemplar fabuloso da beleza céltica) e
chegaram mesmo a praticar a produção independente. Coisas do João... "- A
senhora é brasileira? Conhece o João?" quis saber eu, logo que ela desligou o
telefone. "- Desculpe-me a indelicadeza, sim... Foi assim que reencontrei o poeta João. Com chocolate e com Porto ("Como ela pode manter a beleza com esta mistura?" pensei, mas não perguntei), soube que "- ...a Joane é uma cientista, também da Galiza, que trabalha no Brasil e em outros países ao mesmo tempo". Nada a ver, então, com a escultural Joanne irlandesa que gerou outra escultura céltica. Depois de ler a palestra, as duas partes, em papel de fax, liguei para ele no jornal O Serigráfico, de São Paulo, e saudei-o com a gratidão de poder rever a sua escrita, de o saber tão ou mais espiritual do que antes. Depois daqueles encontros de 1973, só estive com ele na primavera de 1984 (quando pude conhecer Joanne, em estado de graça), e no meio da saudável anarquia que era o seu viver ideológico, literário e jornalístico. Quando terminei a leitura de O Peregrino felicitei-me por ser o primeiro a ter esse privilégio fora do Grupo Granja. Na parte final do escrito (um êxtase psico-literário do poeta e historiador), há um "insert" que chama-me muito a atenção porque trata do suicídio com uma metologia poética (não sei se posso falar assim) incomum - aqui (como em tudo), o poeta João defende a liberdade de escolha: para ele, o instante supremo do sacrifício individual sobrepõe-se às leituras jurídicas, sociais e políticas. A vida existe além e através do incorpóreo, é espírito; e, fisicamente, o espírito envolvido pode, na sua liberdade, decidir sobre estar ou não estar incorporado. A leitura que a poética JB (engraçada a denominação dada por Tereza de Oliveira) proporciona-nos sobre o suicídio é densa. Radical. A liberdade de ser e de estar é como a poesia: uma dádiva espiritual. O Peregrino, nas duas partes que o compõem (particularmente a segunda, para mim), é uma lição de liberdade que incomoda. Irrita, mesmo. Poucas pessoas vivem desligadas das vias institucionais, ou legais, e o poeta João que honra a sua origem usando o nome Barcellos é uma dessas raras pessoas. Um ser cósmico na sua linhagem céltica, porém, de influência minho-galaico com pontas árabes e teutas. Marc Cédron, 49, ecólogo-biólogo e psiquiatra
|