A CÓSMICA ESSÊNCIA DA POÉTICA

Palestra Primeira

O
Peregrino

 

1

...há em cada ser humano um deus, o qual,

se tu quiseres, ordenará, em cosmo e em felicidade,

o teu caos...

Sócrates

 

O Ser Humano em peregrinação o é desde que se conhece como algo-além-do-animal; desde que do berro e do gesto passou a articular palavras e cânticos rústicos; desde que, nômada, buscava sobreviver aos seus semelhantes numa evolução tão naturalíssima que o fazia amar a Terra e os Astros e, desse Amor telúrico-cósmico, passar a adorar aquilo que o rodeava. Da comprensão da Natureza e das vastas possibilidades de vivência aí encontradas, o Ser Humano abríu "...um caminho através de tudo e participa do poder divino", como escreveu Balzac. Nascia aí a compreensão possível do Além...

Entendeu o Ser Humano que não lhe bastava somente Estar. Ele existia para recriar a própria Existência. Havia uma missão que lhe era inerente e indispensável. E, ao entender isso, partíu em busca de outros lugares, de outros povos, para tentar entender, também, a Energia cósmica que lhe animava a íntima necessidade daquele algo-mais-além-do-animal, como nos ensina Paulo...

Deus é amor e aquele que permanece

no amor, permanece em Deus e Deus nele.

Dessa primeira peregrinação pagã, em que a Terra e os Astros eram sinais ainda não evidentes do Além-transcendental, o Ser Humano passou a acreditar em sua própria Energia, como, mais tarde, diria Jesus - o Cristo da seita judeo-palestina Os Nazarenos...

Erguei-vos, não temais. Se tiverdes fé (...) direis a este monte:

passai daqui para lá, e ele passará.

Em suas andanças, homens e mulheres foram recriando a Humanidade, aperfeiçoando, vivendo em Comunidade, preparando o alimento entre todos; da Cultura imediata do dia a dia vieram o Pensamento, os códigos, a moral(idade), as classes divididas entre fortes e não-fortes; e, já aí, a diferença racial no tribalismo, o que não impedia a peregrinação aos sítios então tidos como Oráculo, onde o Além-se-manifesta sobre o íntimo de cada Ser na conjugação entre a Terra e os Astros. O sagrado e o divino mexiam com a intimidade, faziam sobressair a Espiritualidade: começava a existir um "... espírito religioso para com a vida", como escreveria o poeta brasileiro Mário de Andrade; e, nessa virtude tão naturalíssima quanto a Terra que lhe era casa e caminho, o Ser Humano aprendeu a amar as coisas e a si-mesmo, encontrando em cada nova peregrinação um sinal maior do Além. Esses pontos, ou sítios, foram

se multiplicando e nasceram cidades-estados que sediaram as primeiras grandes Comunidades, as primeira línguas - e, nessas culturas, as coisas-do-Além iam sendo nomeadas de diferentes maneiras: para cada Língua o(s) deus(es) tinha(m) diferentes nomes, sendo egípcio, romano, celta, grego, hindu, mulçumano, judeu. No dizer de Huberto Rodhen, "Se tudo fosse apenas Uno não haveria Universo". Ao entender a diversidade do seu próprio universo a Humanidade percebeu que "A pessoa é essencialmente cósmica", como viria a afirmar Teilhard de Chardin.

Se entre o mercantilismo das trocas e a invenção da moeda está o sobreviver de cada Povo, de cada Cultura, jamais o valor espiritual deixou de ser aquel'outro caminho cultural - e, cada Nação, cada Continente, experimentavam a sua evolução material aprofundando a religiosidade, i. e., o sagrado e o divino eram já suportes culturais do dia a dia.

Quando pensadores e peregrinos, como Lam, Jesus, Maomet e Buda, surgiram entre os povos como cristos (=guias de tradição espírita experimentando o escatologismo), a religiosidade era um valor fortíssimo - pagão, fora do sistema judaico - e que alimentava até guerras e fez nascer muitos falsos profetas e senhores feudais, alguns dizendo-se "eleitos de Deus", só para terem mais poder entre os seus seguidores ignorantes. Por isso, as religiões tornaram-se verdadeiros estados enfrentando crises de identidade, espirituais e culturais, e fechando-se inclusive para a busca do Espírito libertador, transformando a mera Tradição em fundamentalismo - daí, o valor verdadeiro da íntima religiosidade, a Fé do peregrino, fez-se mero comércio e cavalo-de-batalha de extermínios... Coisas com as quais nem Lam, nem Jesus, nem Buda e nem Maomet tiveram a ver, porque eles, enquanto pensadores e peregrinos, puseram idéias entre os povos, não criaram guerras.

Hoje, e por isso mesmo, o peregrino é um idealista... um Ser cheio de Fé que caminha pelo mundo e pelos locais sagrados dos ancestrais como um Poeta que bebe na história geral a sua essência e tenta recriar aqueles antigos caminhos que geraram, de espectros espíritas, a sua Religiosidade. Sobre esta particularidade façamos uma leitura d'Os Colombos, de Fernando Pessoa:

Outros haverão de ter

O que houvermos de perder.

Outros poderão achar

O que, no nosso encontrar,

Foi achado, ou não achado,

Segundo o destino dado.

Mas o que a eles não toca

É a magia que evoca

O Longe e faz d'ele história.

E por isso a sua glória

É justa aureola dada

Por uma luz emprestada.

(in Mensagem, Lisboa-1934)

Saiba-se, no entanto, que Pessoa não fez os caminhos de Jerusalém, de Meca, de Santiago, ou das Pirâmides; ele foi o Espírito que sabia ser-estando por uma práxis espiritualizada, aquele que em sua Fé percebeu o mundo maravilhoso da divindidade em sua própria criação poética.

Daí que O Longe do qual ele fala sejam todos os caminhos que levam à História dos povos e sempre à sagrada memória do(s) Deus(es) em cada nova geração que chega, porque nós vivemos com uma luz emprestada - ou, a Energia do espectro cósmico que alimenta e é o Espírito!

O Ser Humano é um Poeta quando torna-se Peregrino vivendo a chama do Espírito eterno, e o Peregrino é sempre o Poeta quando se faz ao caminho para saber de Si-mesmo, ou em Comunidade para homenagear os sítios sagrados de cada Cultura.

Em cada peregrino está a renovação da Tradição religiosa-cultural de cada Povo pela magia que evoca / O Longe e faz d'ele história - porque a Fé é, além de uma Cultura adquirida nessa Tradição, a resposta íntima do Ser Humano à Energia cósmica com que o Espírito brinda todos, embora nem todos o saibam...

Na realidade, como diria Chardin, o peregrino faz a sua caminhada para "Atingir o Céu pela construção da Terra"; pois, quando vai a Jerusalém, a Meca, às Pirâmides ou a Santiago de Compostela e Fátima, ou aos lugares que lhe incitam o alquímico Instinto Cósmico, o peregrino deixa uma semente do Espírito que é e que vai crescer entre os vindouros.

 

 

 

 

2

A não ser que vos torneis simples e inocentes

como as crianças, não entrareis no reino dos céus.

Jesus

 

O que move um peregrino?

Depois dos difíceis tempos da Antiguidade conhecida, o que faz um peregrino?

Quem não acredita em Si-próprio, quem não sabe do seu Eu e da inocêncoia que transporta, não percorre caminho algum. Não vive a Vida. Não sabe que o Amor, essa Luz tão profunda em nós, que nos transforma em gigantes d'Energia, Espíritos da Bondade, nos torna crianças em busca do novo, da Verdade.

O peregrino é um salmo.

É o Ser Humano transformando o seu Ser-criança na Fé que dilata a sua íntima Vontade de Estar sendo o Espírito, de caminhar com Deus, de se realizar como um Todo cósmico.

"Devemos colocar acima de tudo o Conhecimento do nosso Eu. O mais útil de todos os conhecimentos é o que nos dá a noção exata do que somos e nos ensina a dirigirmo-nos na

Vida", pregou Ambrósio, colocando sabiamente um dos pensamentos que guia muitos peregrinos. Isto porque "O sábio tem vergonha dos seus defeitos, mas não de os corrigir", como ensina Confúcio.

E o peregrino é isso: um sábio. Ele é um Ser que é capaz de viver além das coisas ordinárias e passar essa Espiritualidade, essa Vontade cósmica, em cada passo nos caminhos que percorre, sabendo, como sabia Ghandi, que "tudo o que é feito por Deus é preservado" em cada Espírito peregrino.

 

 

3

Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer,

produz muito trigo.

João

O apóstolo João dizia: "Na casa de Meu Pai há muitas moradas (...) E vós sabeis para onde Eu vou e conheceis o caminho". Todo o peregrino sabe disso. E também sabe, como lembra Rudyard de Kipling, que "Não há levante nem poente, nem fronteiras nem raças, embora cada um venha da extremidade da terra", porque antes de qualquer valor religioso-cultural vale a dimensão cósmica de cada Ser, sendo que cada Peregrino, em suas andanças, é uma e muitas moradas do Espírito que nos ensina a Bondade e o engenho.

Todo o Peregrino transforma o caminho em jardim porque ele é o vero Poeta oferecendo flores à Vida.

E havendo um justo a caminho, como se poderá extrair do Talmude, isso é já o suficiente para que o mundo aconteça e o Espírito seja!

Em toda a sua caminhada o peregrino transporta, já dizia Confúcio, um punhado de Terra para fazer a sua montanha. Essa montanha é

a compreensão cósmica dos universos que nos rodeiam,

é o Saber daquele Longe que só alcançamos

em Espírito d'Amor

e quando, em nossa íntima caminhada, somos o peregrino que vive e deseja o Amor como grão de trigo que quer ser mais e mais trigo. É como aquele que, sabendo-se Guerreiro Espiritual, descobre:

Soube hoje que o Universo é uma maresia de cosmos

E que o Todo que persigo é o vário Eu que sou;

Soube hoje do m'Eu e n'Ele vi

Cartas e pedras e cinzas; em sonhos altos me comovi

E dei comigo sentado n'Universo...

Há um sábio em cada Eu,

Mas a magia que o fará Guerreiro Espiritual virá do Amor

E, nesse toque, dirá: Eis-me, Eu!

(João Barcellos, in Balada Do Guerreiro Espiritual - Cadernos Oficina Poesia, RJ-1994)

 

O peregrino surge na paixão pela Vida. Naquele instante em que se dá conta da Luz que transporta e nunca soube (como) usá-la para vivenciar o Espírito que é em Si, para vivenciar o Amor e dilatar-o-seu-Eu-com-Alguém; ou, somente ele, na sua íntima Fé, percorrendo os caminhos que o Cosmo lhe abríu fazendo-o viver o Espírito do(s) Deus(es).

Por esta razão, e pela Poesia que alimenta e irradia,

o Peregrino é um cântico à Vida!

 

 

4

...a vida

Como os homens a vivem,

Cheia de negra poeira

Que erguem das estradas.

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... nada mais pretendem

Que ir no rio das coisas.

Fernando Pessoa

(Odes, Ricardo Reis)

A estrada da Vida não é um canteiro de belas flores: a falsidade e a inveja dos brutos, ignorantes e infelizes, são espinhos diabólicos que se opõem à Fraternidade - mas, como afirmava Charles Chaplin (o famoso Charlot), "...o Altruísmo acabará por vencer e há de imperar o Amor".

Aquelas e aqueles que querem gozar plenamente a Vida sabem que não podem ir no rio das coisas, que têm de transformar a negra poeira / Que erguem das estradas no sal e no sol das Almas que são: porque é na vivência da Vida que se aprende a dar valor a uma estrada, seja ela da Terra que (nos) leva aos sítios sagrados, seja aquel'outra Espiritual.

Sócrates, o grande pensador, dizia: "Não aprenderam de mim senão o que já sabiam e que são eles quem por si mesmos acharam belas as coisas que já possuíam". E, da mesma maneira, Huberto Rodhen: "Ninguém pode educar alguém - alguém só pode educar-se a si mesmo". Dentro destes exemplos, veja-se que o Caminho da Felicidade passa pela Autodeterminação, essa Vontade própria que leva ao Conhecimento, ao saber do Eu, já que as "almas infelizes envelhecem cedo", como escreveu Camilo Castelo Branco.

É isto que me leva a afirmar:

o Peregrino é um Ser dotado da Luz quando

realiza os caminhos sob a energia da Fé;

quando vive a cósmica essência da poética

que é ser um Fazedor-da-Vida...

Um dos poetas-músicos mais citados do Séc. 20, o inglês John Lennon, afirmava "...eu tenho e vejo o Todo... não só na minha própria Vida, mas o Universo todo"; e como ele, outro Ser em luta pela Liberdade nos caminhos da Humanidade - Martin Luther King: "o caminho está cheio de asperezas, mas, não obstante fadigas e humilhações, eu tenho ainda um sonho...", aquele sonho que nos incita a viver, que nos faz cantar, como na poesia de Walt Whitman

Vamos! quem quer que sejais, vinde

peregrinar comigo,

Encontrareis o que jamais se cansa.

Vamos! não devemos parar por aqui

(in Cântico da Estrada Aberta -Leaves of Grass)

Ao cantar isto e sendo cantado por todo o mundo, Whitman tornou-se Peregrino Espiritual, tal e qual Fernando Pessoa ou Jorge Luís Borges; porque, como sempre esclarecia Madame Blavatsky, cada Ser transporta em Si-mesmo a potencialidade da Imortalidade - e, continuo eu,

Imortal é todo o Peregrino que canta e faz a Estrada da Vida, com Amor...

 

 

5

A imagem não é uma coisa:

é um ato da consciência.

Sartre

O Eu é o mestre do eu;

que outro mestre poderia existir?

Buda

 

Se o Ser não é mais do que aquilo que Ele-mesmo projeta e faz de Si, como pensava Sartre, então, esse é o sinal primeiro da estrada.

E para percorrer essa Estrada, o Ser Humano dever ter em conta esta poética budista:

Não corras atrás do passado.

Não busques o futuro,

o passado passou.

O futuro ainda não chegou.

Vê, claramente, diante de ti o Agora.

Não existem disputas nem classes, não existem fortes e não-fortes nem pobres e ricos, quando o Ser Humano torna-se Peregrino, olha o Agora, o Hoje, se determina e, em ato de Consciência na sua íntima Vontade, parte para fazer a Estrada e saber que é imortal enquanto for capaz de cantar o Eu - e, nesse salmo da Liberdade, louvar o Espírito na simples Existência, que o mesmo é dizer viver o(s) Deus(es).

Nesse caminhar não há Igrejas como não há Seitas, há somente o Peregrino e a sua Fé, e a sua cósmica essência na poética que é sentir o Eu divino!

 

(Esta Palestra Primeira foi publicada pela Ed. Edicon, em 1995/SP, ISBN 85-290 CDD-869.91,

sob o título genêrico O Peregrino e, em 1998, revista pelo Autor e aumentada com a Palestra Segunda)