Uma Leitura Sobre Jules Michelet e Manuel Reis

Para Estudar A Ação Intelectual de João Barcellos

por Tereza de Oliveira

 

 

I

 

Nasci povo, tinha o povo em meu coração...

Mas a sua língua era-me inacessível. Não

consegui entendê-lo.

Jules Michelet - in A Agonia Da Idade

Média (EDUC/Imaginário, Brasil-1992)

(...) se a consciência dos individuos-cidadãos

não se tiver elevado ao ponto de cada um poder

dispor de si próprio como um Deus (...) Haja

inteligência para estabelecer as (...) equações

psico-sócio-históricas

Manuel Reis - in As Máscaras De Deus (Estante

Editora, Portugal-l993)

 

O instante é a Verdade que une o Todo na Humanidade, esclareceu-me João Barcellos quando o revi, em 1991, na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis (Brasil), ao têrmino de sua conferência De Machado de Assis a Fernando Pessoa.

Onde este jovem foi buscar tanto Saber para incorporar esta diversa intelectualidade no seu hodierno Existir?, perguntei-me. Muitos intelectuais escrevem sobre o passado e os mortos, como Jules Michelet, outros sobre o passado e o presente, como Manuel Reis; aliás, dois autores de quem João Barcellos é leitor, assim como da obra de Antoine Fabre D'Olivet. No instante em que ele pronunciou aquelas palavras, com que inicio este escrito, entendi: ele é um intelectual que vive a agonia de ser Povo e não ir nas águas fáceis do rio poluído pela Obscuridade da religião feita Poder, de ter a Consciência do indivíduo-cidadão livre e ser tão cósmico como os seus antepassados célticos, i.e., João Barcellos é um solitário erudito que faz do Amor o gesto solidário pelo qual interpreta o Bem e o Mal.

 

 

 

 

II

De onde vem que a arte está morta,

excepto em raras excepções? É que

a história não a matou.

Jules Michelet - op. cit.

Um povo foi entregue à espada e toda

a terra conclamada a seu extermínio

- Idem

 

Nas páginas de Estórias Poéticas, publicado no Rio de Janeiro, e de Poesia E Seis Contos Dum Baralho Só, publicado em São Paulo, livros que me foram oferecidos pelo autor na PUC paulista, durante sua palestra O Escritor E A Escrita, encontrei a Alma deste escritor e pesquisador português. No corpo de Estórias Poéticas, os contos Não Deixar Ir A Liberdade e Olhar Pra Ver E Sentir são autobiográficos - digo, necessariamente autobiográficos pela vivência do autor entre os choques culturais produzidos na sua leitura mundana da Língua lusa e o "outro" Portugal encontrado no Brasil; no segundo livro, os poemas A Sedução Da Liberdade e Viver É Preciso, junto com o conto Um Dia No Campo, mostram (demonstrando claramente) a força psíquica do Amor que nele é Vida sempre ressuscitada.

A sua infância mais rural que urbana - ele nasceu em Barcelos, norte de Portugal, uma cidade onde, nos Anos 50, predominavam o artesanto e a agricultura - e o seu contato direto com os sítios arqueológicos dos ancestrais célticos, ajudaram-no desde logo a transformar o cotidiano em uma luta cultural pela preservação da Terra e luta pela Liberdade individual.

Desde cedo, João Barcellos, através de um missionário que fundara o grupo Os Façanhudos (porque todos são capazes de Façanhas Pelo Bem), com sede na torre dos sinos da Igreja Matriz, teve contato com a profunda religiosidade. "O que é preciso é respeitar a Verdade daquilo que sentimos, o Deus é a Fé que temos em nós pela Vida, não é nem Igreja nem Santo, por isso, Os Façanhudos caminham, acampam, dançam, conhecem em si a Humanidade e, aí, a Divindade de uma poesia, de uma canção, da família, das paixões. O que é preciso é entender o Eu para entendermos a Verdade dos legados deixados Ontem, para podermos construir o Amanhã que é o nosso Hoje", ensinava aquele jovem e revolucionário missionário de Barcelos. Todos os membros de Os Façanhudos tinham nomes de animais, e João era o Onça, o que combina bem com o seu estilo ariano de lutar, lutar e lutar. O certo é que o jovem João anotou e guardou durante anos e anos os ditos daquele missionário que, talvez sem o saber, preparava lideranças com espírito livre. Por isso, João Barcellos, tal como Jules Michelet, acredita que História e Arte combinam-se na perfeita estética do diverso Saber.

Aqueles dois livros, os primeiros publicados no Brasil, são uma síntese do Pensamento hodierno que é preciso ter em conta para qualquer estudo que se faça sobre João Barcellos.

 

 

III

Quando a Ideologia (...) se sobrepõe às funções

lógicas dos indivíduos e pretende cobri-las como

um glaciar, o que ocorre (...) é a dissolução do

pluralismo, a hipertrofia das funções racionais

das pessoas; e o que aumenta (...) é o conformismo,

o monolitismo, a tirania...

Manuel Reis - in Não Apaguem As Luzes (Estante

Editora, Portugal-1990)

 

Ao estudar personalidades como Mário Schenberg (palestra proferida em São Paulo, 1997), Mário de Sá-Carneiro (um excelente ensaio publicado no Letras Fluminenses, RJ-1991), Fernando Pessoa (Reflexões Sobre..., ensaios, Brasil-l996, editado na Internet pela Cotianet, juntamente com os ensaios Escritos Ecológicos), Morgado de Matheus, Vinicius de Moraes, e outros, João Barcellos busca alimentar o suporte intelectual que lhe dá Vida e lhe possibilita aferir não o Espaço ou o Tempo (que ele desconsidera, simplesmente) mas a Vida vivificada (como gosta de dizer/escrever) sobre a Ideologia que vomita a pseudo-legislação sobre o Estar e o Ser do indíviduo-cidadão. Aqui assume fundamental importância a sua conferência (no Espaço Mizar Cristal, Cotia/São Paulo) e do livro O Peregrino - A Cósmica Essência Da Poesia (Ed. Edicon, SP-1996) para a análise de seu caminhar telúrico.

É-lhe impossível viver sem acreditar nos outros; é-lhe impossível aceitar que uns poucos dominem a Comunidade; que a Política obscurantista - porque mercantilista e de interesses pessoais - possa atrasar os processos de Cultura ativa... Ah, aqui, aqui tudo vira tortura, morte latente, estupidez idolatrada tão a gosto da Igreja estado-polícia, como ele disseminou, como que extirpando seus demônios, nos textos inêditos Romance No Rio e O Outro Portugal; dois romances infelizmente conhecidos somente de poucas pessoas!

Desde meados de 1992 ligado ao jornalista e ecologista W. Paioli, cujo trabalho só conheço pelo testemunho de outros, escreveu textos genêricos sobre Ecologia e Ecologia Humana no jornal Treze Listras (em que foi fundador e editor com aquele jornalista) e no Gazeta de Cotia; conheceu a obra de Sidônio Muralha e dedicou-lhe um belo ensaio com o subtítulo O Poeta Da Vida, pela extrema ligação entre a Ecologia e a escrita poética sidoniana. Dessa atividade com W. Paioli, editorial e ecológica, estuda e aceita incorporar-se a uma espécie de nova doutrina eco-política, denominada Fraternalismo, à qual dá um toque de Cultura e de Ideologia libertária; no lançamento público dessa doutrina (Auditório da CETESB, São Paulo, Novembro de 1997, e Cotia - Espaço Mizar Cristal, Dezembro do mesmo ano) é que João Barcellos expõe a sua linha lógica de eco-política (Cultura E Sobrevivência Entre Nós E A Terra, discurso) e seu estudo acerca do físico, crítico de arte, político e ecologista Mário Schenberg; aqui, uma outra obra de arte de inspiração libertária contra a Ideologia de um Poder globalmente absoluto com alicerces na derrubada da Terra...

Sem deixar influenciar seus trabalhos, às leituras das obras de Jules Michelet e Manuel Reis (de quem é amigo e chama de mestre) João Barcellos junta a do francês Antoine Fabre D'Olivet, cuja tradução (por Edmond Jorge) de História Filosófica Do Gênero Humano (Ed. Ubyassara, RJ-1991) ajudou a divulgar no Rio de Janeiro, no mesmo instante... sempre o instante na vida deste escritor!...em que lançanva novos poetas brasileiros e um importante estudo de Francisco Igreja com o título A Semana Regionalista De 22 (Ed. Edicon, SP-1991). Se as palavras daquele missionário de Barcelos foram/são importantes para o introduzir no mundo real tendo os ancestrais como base, as leituras sobre Michelet e Reis deram-lhe uma maior bagagem intelectual, e o livro de Fabre D'Olivet fê-lo retornar culturalmente à essência céltica.

Em quase todos os prefácios que escreveu, e são tantos..., para obras de amigos e de novos autores, João Barcellos trilhou os caminhos da Arte pura, aquele que Michelet percebeu como o elo de ligação entre o Agora e o Sempre, à qual nenhuma era obscurantista põe fim.

Prefácios, breves estudos e artigos, são uma Obra à parte na vida inteletual deste português, porque são a expressão do Poeta e do Crítico Literário mostrando os contornos da Liberdade e do Fraternalismo - e porque, também, um trabalho que não foi nem é remunerado: é sim, Arte pura, Humanidade em desenvolvimento cultural e social.

Tudo contra o Obscurantismo!... é o seu lema. Sua bandeira. Por isso, muitos o confundem como maçon ou rosacruz, e outros tentaram levá-lo para a Maçonaria. "Não quero templos, nem missas, quero ser Eu, uma partícula do Cosmo. E pronto." foi e é a sua resposta a essa questão.

Entre seu olhar azul de profundezas infinitas e seus gestos cavalheiros e calmos, raro rebenta tempestade: desde moço foi ensinado a conter, às vezes a calar, a rebelião do Eu ariano que lhe incha o sangue. Sua frieza é aparente. Estratégia animal apreendida entre Os Façanhudos.

Creio, pelo que sei, que 1997 foi mais um ano zero para João Barcellos, poeta andarilho sempre em estado de partida: com a artista plástica Ivanilde Tárraga e a poeta Valéria Lítvac, fundou o Jornal d'Artes - "da Sampa bandeirante para o Brasil e o mundo lusôfono", esclareceu-me ele logo após essa implosão intelectual que aconteceu junto ao sucesso do jornal O Serigráfico, de que é editor.

Ele atua como Cavaleiro da Cultura em qualquer parte do mundo, contra a Ideologia e o Poder da Ignorância, o que lhe traz inimigos na área da Política e muita inveja social. Mas ele ri. "Sou o último a rir da Ignorância porque o Amanhã vive em mim nos atos de Hoje!", se justifica.

 

 

IV

Ah, como é bom sentir n'Outro olhar o espírito doce

Do imprevisível Caos!

Batalhas tantas, pelo discernimento do bem e do mal,

Fazem-nos ser, no dia a dia, um Oráculo

- do poema Balada Do Guerreiro Espiritual

 

Existem poemas fundamentais para o estudo deste Poeta: Balada Do Guerreiro Espiritual (in Cadernos Oficina-Poesia, pp 82/83, N.22 - RJ/1994), A Sedução Da Liberdade, op. cit., Carta Eco-Política De Um Poeta Amoroso (in De Costa A Costa Com A Casa Às Costas, Ed. Edicon, SP-1996) e Exuberância E Folia No Mar De Longo (in Internet, Cotianet, SP-1997). A intensa Espiritualidade, o diverso Amor, a Liberdade em sua completa expressão-ação, o "eixo"Terra-Humanidade-Cosmo e a História, esta última particularmente em relação ao Exuberância E Folia No Mar De Longo, poema em trinta cantos da saborosa épica contrária à leitura camoniana e muito próxima à pessoana, acerca do Quinhentos lusitano e do Brasil - poema com que ele comemora, e bem, o evento multinacional Brasil-500 Anos, são os quatro pontos que fazem implodir as entranhas psico-sociais e culturais deste português; e, uma implosão delicada, a força viva de uma Existência que chega a nós como que uma comunicação cósmica -, essa Arte pura de chegar até às entranhas dos Outros com a leveza de uma Paixão, de um Amor respirando Liberdade.

Neste ardor artístico há uma "engenharia plástica", como definíu Francisco Igreja (in Prfácio a Estórias Poéticas), que coordena essa anarquia inteligente do Escritor, e uma visão real que "não faz dos personagens títeres da trama", no dizer de António Carlos Villaça sobre Uma Caravela De Prata (romance, Ed. Edicon, SP-1991), que aliados a um poder de síntese admirável - como no caso de Mário Schenberg - O Ser Que Sabia Estar (in Internet, Cotianet, SP-1997), prefaciado pela física e psicóloga Joane d'Almeida y Piñon - tornam quase insustentável a não-leitura da Obra global de João Barcellos. Entre pesquisas de História, Religião, Espiritualidade, Amor, Ecologia, Artes, Sociedade, os textos de João Barcellos são extremamente poéticos e nem sempre é possível definir uma linha separadora da ficção e da realidade. Talvez nem existe. E o Poeta, só ele, sabe como contornar esse obstáculo com sua licenciosidade peculiar.

No caso de João Barcellos não interessa métrica, não interessa escola literária: interessa somente Ele-mesmo e sua Leitura Poética dos universos que o tornam Vida e Divindade. Mais concretamente: João Barcellos trabalha a Essência Poética descoisificando a Ideologia das convenções. É um Escritor que faz da Escrita uma Arte pura transformando tudo em Oráculo universal.

Tereza de Oliveira, poeta/crítica de arte