QUESTÃO TIRADENTES

Da Independência Com Sabor Mineiro

 

Por João Barcellos*

 

 

 

cantar o mundo

é estar e ser o belo

no ínfimo ensejo

do moribundo

sou a espada do desejo

sou o novo mundo

(JB - in Perfil do Alferes, 1989)

 

 

Quando se fala da História do Brasil deve-se esclarecer que do Séc. 16 aos meados do Séc. 19 tratou-se da História dos portugueses e dos luso-afro-brasileiros, e que só em finais daquele Séc. 19 é que o Brasil passou a tratar-se e a ser tratado como Pátria brasileira. Até então, os nascidos nas "partes ultramarinas do império português", seja na África, no Oriente ou no Brasil, eram tidos e achados como "cidadãos portugueses e súditos d’el-rei". Na realidade, o que existe, em História, é o percurso português dos Descobrimentos, com a consequente tomada territorial, povoamento e miscigenação - particularmente na Insula Brasil -, percurso alfinetado quer pelos Filipes d’Espanha (que dominaram Portugal por seis décadas, no Séc. 17) quer pelos ousados mineiros que na Vila Rica iniciaram, no Séc. 18, o processo de "pensar brasileiro sob a bandeira de uma nova raça". É, pois, necessário dizer-se que o Brasil-Nação o é realmente com a implantação da República, no final do Séc. 19... embora tenha continuado sob o ranço jurídico do Direito Romano através das ordenações filipinas que, verdade, nada mais foram que a continuição da jurisprudência da era afonsina.

 

Pode-se afirmar, e eu o faço nessa certeza e até por outros escritos já publicados por mim (na Imprensa e na Internet), que a participação do alferes Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes) na tentativa de levante contra o Império Português deu-se mais pelo fervor anti-monárquico fermentado e bebido no ideal iluminista do que por uma política estrategicamente concebida... E foi assim tão romântico o evento que ele - o Tiradentes - viria a assumir totalmente aquele movimento libertador enquanto os poetas Tomás Antônio Gonzaga e Inácio José de Alvarenga Peixoto eram deportados, Cláudio Manoel da Costa morria na prisão (ali mesmo, no teatro operacional: atrás das grades da Casa dos Contos) e, o rico fazendeiro Joaquim Silvério dos Reis, após delatar o "caso", tinha suas dívidas perdoadas junto das estruturas fazendárias da Coroa. Foi, pois, uma alfinetada e tanto no conceito de unidade imperial apregoada pelos portugueses da "terrinha".

 

Mas, o que levou Tiradentes a assumir o caso como seu?

 

Vários relatos chegaram até nós - particularmente os contidos no livro Tiradentes, do pesquisador Wanderley Torres - dando-nos conta de um alferes bem falador e mulherengo, homem liberal de mais no espalhafato das novidades que ele mesmo gerava e transportava. Ora, se Joaquim Silvério dos Reis "arrependeu-se" para ver-se livre da carga tributária ao pensar que a empreitada revolucionária não teria sucesso (e, se tivesse, teria ele as mesmas benesses...), também Joaquim José da Silva Xavier deve ter-se "arrependido" de ter sido tão boca aberta, tão marialva em tempo de recolhimento e ter tido o Reis como amigo do peito. Tal "arrependimento", já nos calabouços cariocas da Coroa, e ao saber da triste sorte dos camaradas de rebelião, levou-o a assumir o caso com todas as consequências previsíveis... ou não fosse ele um oficial do Exército de Sua Majestade!

 

Qual a consequência do ato de Tiradentes?

 

Sendo ele oficial dos Dragões, um guarda de honra, sabia do peso das ordenações portuguesas que refletiam o Direito Romano, as quais tratavam do ato punitivo na mais pura prostituição intelectual que determinava ser o doméstico tão desigual na lei quanto o político, o militar ou o religioso - i.e., cada segmento social era tratado (como ainda hoje o é em muitos países e no Brasil...!) com diferencial jurídico na pena a aplicar; mas, estando um militar inserido no caso, eis que os inquisidores e a própria Coroa devem ter percebido a sua importância. Não uma importância pessoal, mas uma importância radicada no seu estatuto castrense: "eis um exemplo para todo o Império", devem ter raciocinado. Poderiam ter escolhido um juiz-poeta, como Cláudio ou como Tomás, mas tal escolha não teria nem o eco social nem a força histórica que o regime precisava imprimir no ato punitivo. Com aquele Tiradentes, a Coroa tinha a chance de punir o Povo e o Exército descontentes com os percursos da Ordem político-administrativa na colônia: é que o Povo e o Exército são realmente entidades próximas, mas, para a Coroa, essa proximidade não poderia ser de conspiração, sim, de unidade em torno dos interesses da Casa Real e do Vaticano (no caso português, Estado e Igreja Católica formaram um eixo de interesses comuns que mancharam de sangue a Humanidade, desde os últimos anos de Afonso I ao meio século da republiqueta que foi o Estado Novo salazarista, com reflexos no getulista, pasmem-se...)! Por isso, entende-se melhor por que Tiradentes servíu de exemplo maior naquele momento histórico.

 

E o seu ato de assumir sozinho ajudou na estratégia jurídica dos que devassaram o caso. É que, a par do Iluminismo que chegava à colônia, sopravam ventos de uma Inglaterra cada vez mais dona de Portugal, em função das dívidas contraídas pelos portugueses ao pedirem o apoio inglês contra as invasões napoleônicas e outras anteriores, e de uma América do Norte mais francesa do que nunca e querendo tratar comercialmente com o Brasil através de parceiros locais... Os ventos ideológicos do quadro político-econômico em que se encontrava o Colonialismo inclinavam-se mais para formação de repúblicas abaixo do Equador do que para o continuismo do Absolutismo monárquico, até na Europa.

 

Tiradentes caiu como luva salvadora na mão ensanguentada da Justiça absolutista. Os inquisidores devem ter dado pulos e gritos de alegria. No entanto, esqueceram que tal estratégia exigia políticas outras de contorno, como as econômicas e as diplomáticas; esqueceram que a fala do Tiradentes era a do Exército e era a do Povo...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

nos lugares por onde passaste e puseste tua fala

ficaram expostas as tuas partes

enforcaram-te porque ao bruto império disseste não

 

cortadas as partes

salgadas foram

 

para que o império uno também no além-mar

d’el-rei soubesse e sentisse a mão pesada

 

cortadas as partes

salgadas foram

 

enquanto os poetas íam pela vela enfunada na bolina

preencher punição nas partes africanas em danado destêrro

foi-se o romântico bulir da revolução no estêrco

imperial das afonsinas e filipinas ordenações da justiça

 

cortadas as partes

salgadas foram

 

com mirradas gotas d’água benta em benção ensanguentada

fúnebre cortejo que a alma brasileira há de sempre lembrar

 

cortadas as partes

salgadas foram

 

se assim o era nos arraiais d’el-rei assim a revolução

foi decepada em todas as partes

e não somente as tuas porque ainda agora ouvimos a tua fala

 

 

 

 

Este "ouvimos a tua fala", no último verso do poema Oh, Tiradentes!, que escrevi em Ouro Preto, em 1998, é bem o eco histórico da escolha do regime para punir os liberais mineiros.

 

Existiu, talvez, na mente do alferes dos Dragões, quando deu entrada no calabouço, aquela súbita e quase mortífera retração d’alma: onde estou?, por que eu? e, ainda no talvez, aquele rebate: ah, mas eu tenho uma missão aqui e além... Essa crença sobrenatural que lhe animou as andanças pelos caminhos árduos da vida quer no Rio de Janeiro quer em Minas Gerais. E deve ter sofrido muito ao sentir-se encarcerado, porque a Liberdade de estar e de ir e vir era, nele, um culto à Cidadania. E diante da evidência do inevitável tornou-se o mártire no anseio iluminista da res publica. Por isso, no centenário primeiro da proclamação da República brasileira, em 1989, cantei do seu perfil: sou a espada do desejo / sou o novo mundo.

 

Naquele instante o ato de Tiradentes teve como consequência dar embasamento às instituições repressivas do Estado monárquico, no entanto, o gesto romântico teve outra consequência a longo prazo: tornou pétrea a sua fala que o Povo envolveu com a Bandeira do algo novo que nasceria quase um século depois: o Brasil dos brasileiros!

 

Em torno da Questão Tiradentes é-me fácil o discurso sobre o Brasil-brasileiro, aquele que em 1889 proclamou-se qual novo mundo sibilando a Liberdade pátria no eco da fala do herói que o foi, de fato!

 

 

 

 

 

 

João Barcellos

escritor, consultor cultural

membro da Associação Nacional de Escritores (ANE)

e do Grupo Granja (GG)

1999