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Sábio Achador

 

Do Cosmógrafo E Piloto Que Achou E Registrou

A Insulla Brazil E Ainda Conduziu A Esquadra

Cabralina Até Àquele Porto Seguro

 

 

Duarte Pacheco Pereira

 

O cientista e marujo

que descobriu a Insulla Brasil em 1498

embora a tenha defendido já

em Tordesilhas no ano 94

a mando d’ El-Rei de Portugal

 

 

 

introdução

 

Não existe História sem Documentos. O resto é Estória. Que me perdoem os ‘historiadores’ que fazem a Estória para os manuais escolares, quer em Portugal quer no Brasil.

 

É verdade, e os documentos oficiais provam-no, que o espanhol de Palos, Vicente Pinzón, aportou na ponta cearense de Mucuripe aos vinte e seis dias de janeiro de 1500, mas também é verdade e os documentos também provam isto, que por mando régio de D. Manuel I o cientista e marujo-piloto Duarte Pacheco Pereira esteve na região em 1498 para reconhecer, também oficialmente, a exata localização geográfica da lendária Insulla Brasil -, odisséia marítima e cosmógrafa que ele descreve(u) na crônica Esmeraldo de Situ Orbis; e que (para que não restem dúvidas nos ‘estoriadores’ quanto ao Descobridor da Insulla Brasil naqueles mares já antes navegados...) o mesmo, na qualidade de cosmógrafo do Reino, testemunhou e participou da divisão do Mundo feita pelo papado imperial do Vaticano pelos acordos assinados entre lusos e castelhanos no Tratado de Tordesilhas; sabendo-se que ele – Duarte Pacheco Pereira, representava D. João II nesse evento de 1494 com o objetivo de efetivar também a incorporação da Insulla Brasil ao patrimônio da Ordem de Cristo – sob cujo pavilhão místico-bélico velejavam as caravelas portuguesas de então.

 

Aos vinte e dois dias de abril de 1500, quando Pedro Álvares Cabral capitaneava a esquadra imperial rumo às Índias, foi Duarte Pacheco Pereira o encarregado de o pilotar de Lisboa até à Insulla Brasil, sendo depois substituido por Bartolomeu Dias, que prosseguiu a viagem depois daquele porto seguro tropical.

 

Eis que o cosmógrafo, piloto marítimo e cronista Duarte Pacheco Pereira deve ser considerado, à luz dos documentos, o Descobridor do Brasil. Sob dois mantos reais, ele teve por missão primeira descrever geograficamente a tal ‘ilha’ falada por velhos marujos celtas em todos os portos europeus e também ‘desenhada’ num mapa de Bartolomeu de Pareto e, como missão segunda, levar a esquadra cabralina até lá pela ciência náutica que dela tinha!

 

 

 

 

CENA 1

 

 

Bojo de uma caravela. Pipas, madeiras, fardos e mais fardos, baús. Uma candeia ilumina parte da cena.

 

Sentado numa pipa, um MARUJO meio descabelado, sextante nas mãos, parece refletir sobre a própria existência. Tem um ar aristocrático e fidalgo de ser apesar da aparência descuidada. A luz da candeia ilumina-o e projeta-lhe a sombra que se reparte entre os objetos.

 

Ouvem-se ondas rebentando levemente no casco da embarcação.

 

 

Fala o

MARUJO

 

Fixando o sextante e soltando uma voz rouca e forte

 

já não sei ao que vim mas o que fiz

feito está e o silêncio das ondas do Mar

que ecoam no silêncio do bojo

que ora me é da viagem última o lar

não me recusa o bem estar

pois sou da História também um falar

 

e este silêncio me diz

que os traços gizados no grande Mar

formaram o Império novo

do Portugal que de tanto navegar

aprendeu a amar

a ser de si mesmo um outro estar

 

 

 

 

 

 

 

A embarcação está ancorada no porto, o pio das gaivotas mistura-se à terna rebentação das ondas no casco.

 

Ele acaricia o sextante com enlevo. Parece que o MARUJO está a voltar no tempo ao olhar tão longamente o instrumento de navegação.

 

Súbito, dá uma olhada em torno de si para logo se fixar num ponto imaginável à sua frente.

 

 

 

Fala o

MARUJO

 

quando o Infante se fez a Sagres

a balada celta encheu-o de brios rústicos

mas soube dizer e ouvir da mercadância romana e grega

na boleia do árabe que dos buzios

escutava náuticas cartas de bons augúrios

e disso fez os anúncios

 

e o Mundo seria outro com as partes

desconhecidas reveladas já nos ébrios cânticos

e no falar dos Velhos que na calenda

da Sorte não sabiam nem do Tempo nem dos buzios

tão escutados embora que outros eflúvios

os tivessem ilustrado e levado em mentais dilúvios

 

e eu que Duarte Pacheco Pereira sou em artes

de descrever as dimensões e os sítios

disse em Tordesilhas aquilo que o Luso agrega

e quatro anos depois sobre os novos territórios

e a Insulla Brazil descrevi os infindáveis sítios

que dela são tão vastos e o Luso enfim víu-os

 

não descobri nem achei só dei as partes

que o Luso queria e ele dos sítios

questão fez de dizer seus e de Deus e pronto a Era

do Luso imperial passou dos anônimos

pareceres aos sítios

exóticos e dos nativos d’América fez Índios

 

 

com o saber de Dom João II fiz artes

de testemunho real na Tordesilhas sobre os óbvios

e do manto de Dom Manuel I fiz vela

achei-me então entre os alísios

cartografei da Insulla Brazil os feitios

que em outros mapas eram só indícios

 

 

Ainda o MARUJO fala "entre os alísios"e a luz da candeia vai se apagando; ao dizer "eram só indícios" o personagem já está no escuro.

 

 

 

 

 

CENA 2

 

 

Entre o som dos ventos e o das ondas no casco surge no bojo da caravela (sob foco de cima para baixo), bem perto do mastro central, um VELHO imponente cuja túnica mais lembra um celta do que um ‘lobo do mar’. E o VELHO (o mesmo ator em outras vestes e com longa barba branca) segura nas mãos um maço de papéis manuscritos e algumas cartas de marear.

 

 

Fala o

VELHO

 

Olha em volta, cheira o local e, quase

Resmungando, fala grosso de

Sabedoria feita.

 

 

 

deste cheiro d’especiarias e de pau brasil e d’inhaca

soube o Infante que da África fez porto e fez mina

para a Ordem de Cristo e o Papado levarem mundo afora a divisa

da Fé e no Luso encher o peito d’Esperança

 

 

Ele dirige-se frontalmente à plateia enquanto acaricia a longa barba branca. Dá um passo em frente e atira no piso os manuscritos e as cartas.

 

 

vocês souberam que Pedro Álvares Cabral

findou-se na cruel ignorância do Reino

aqui se faz aqui se paga pois ficou com o feito

do Duarte Pacheco Pereira que a Insulla Brazil achou para Portugal

 

 

 

sim ó ignaros que sois também

esse rapaz que aqui falava co’Alma pôs na carta o Brasil

que João e Manuel já sabiam por mim e disso fizeram um barril

diplomático para tomarem de Castela o que sabiam de Além

 

mas não lamentem esse rapaz que ele se fez

um rapaz de Vida cheia e o seu nome e o seu brasão

como o de Bartolomeu Dias e o de Mestre João

serão um dia achados e a História os dirá de vez

 

 

 

Ele pega uma das cartas de marear que atirara no chão, alisa-a com gestos rápidos. O som das ondas no casco é mais forte e o VELHO continua a sua fala.

 

 

não sou o Espírito desse rapaz chamado Duarte

sou um Velho que vos diz que em 1490 os Lusos

ergueram Fernãobuc (sim ó ignaros eu vos falo dos Lusos

de Pernambuco) que antes de Pinzón ali se fixaram sem estandarte

 

já na Tordesilhas de 94 esse rapaz chamado Duarte

sabia que os havia além Equador tal como João e Manuel

eis que Cabral foi só o fidalgo que representou o real papel

que Mestre João e Bartolomeu e Duarte mostraram-lhe a rota com arte

 

 

Ele amassa a carta de marear e joga-a como bola entre os outros papéis. Uma certa fúria ilumina o olhar do VELHO.

 

 

estes últimos anos do Quatrocentos

são a glória científica e náutica desse rapaz chamado Duarte

e em 98 galgou o Mar para fazer do Brasil mais um estandarte

entre os estandartes da padralhada afidalgada e dos Descobrimentos

 

e vos digo que por rumo e estima antes do Luso

outros Povos fizeram do Mar de longo uma estrada d’água

por isso Manuel quis ser o Rei Mercador das mesmas águas

e fez de Duarte Pacheco Pereira o anotador do triunfo do Luso

 

o cosmógrafo virou escriba que piloto fôra

do seu testemunho veio a certeza

entre casas comerciais e papas e banqueiros fixou-se a realeza

aos de dentro nada e tudo para os de fora

 

e o Mundo que para a padralhada era quadrado

virou globo em Portugal

ó coisa louca e linda desconhecida também do Cabral

e lá foram Mestre João e Bartolomeu e Duarte a mostrar o global quadrado

 

era o que tinha para vos dizer ó ignaros

e lembrar que a Insulla Brazil não tem descobridor

mas teve nesse rapaz chamado Duarte um sábio achador

que com vocês divide a honra pública dos raros

 

que nem todos podem ser fidalgos

que nem todos têm crédito na banca do Rei

a riqueza foi e é e será a Lei

até para galardoar os doutos sem brasões e outros algos

 

 

Ele dá um chute na bola de papel que cai entre a plateia. Abrindo os braços para logo os cruzar nas costas, o VELHO abandona suavemente a cena acompanhado do foco cuja luz se esvai.

 

 

 

 

 

 

CENA 3

 

 

Logo reaparece a candeia. Ilumina o MARUJO sentado na mesma posição da CENA 1. O piar das gaivotas sobrepôe-se à quebradeira das ondas no casco. E, apesar disso, o semblante do MARUJO é o de quem está e é entre silêncios.

 

 

 

Fala o

MARUJO

 

O sextante continua a ser a sua companhia.

 

 

 

ai como é mui adverso este Mar que me diz

d’outros pilotos e d’outros barcos ai este Mar

que ecoa em silêncio no bojo

desta caravela e dele me faz lembrar

que há mar e há amar e há um ir e um retornar

do que vos dou testemunho até em meu respirar

 

 

 

Ele olha em volta e, tal como o VELHO, pressente uma fragrância diferente no ambiente.

 

 

que coisa leve levíssima que até a inhaca matriz

levou daqui e é verdade pois parece-me notar

que um Espírito fez porto neste bojo

e então que o seja mas que por bem seja o seu estar

que os celtas o tinham em boa conta no vivenciar

o dia a dia que era de viver e lutar e amar

 

 

Levanta-se da pipa, sextante debaixo do braço, e avança até o mastro onde estivera o VELHO. E o mesmo foco ilumina agora o MARUJO. Olha em frente, parece (querer) enfrentar o mundo.

 

 

"é achada e navegada uma tão grande terra firme" que fiz

como testemunho em pleno e adverso alto Mar

o roteiro e não o feérico esboço

de uma carta que até lá nos leva a navegar

"passando além a grandeza do mar"

foi o que escrevi a El-Rei na carta sobre a Ilha que ele mandou achar

 

e ficai a saber ó vós do Mundo que eu quis

sim que testemunhei sob a Cruz de Cristo para vos dar

a saber do nosso arraial e Império e da Fé e do fogo

d’Alma que é pilotar neste Mar

pois ficai a saber ó vós do Mundo que estar

Brasil é ser Portugal antigo e ser o Mundo Novo no abraço deste Mar

 

mas creio e as fragrâncias novas estão ainda no meu nariz

e n’Alma que essa "tão grande terra firme" que tem no Mar

a sua defesa é uma terra com um bojo

tão rico quanto d’Oriente as especiarias e o exótico falar

que será um outro Portugal ou outro Império porque está a ecoar

em mim um Espírito velho e isto me faz falar

 

 

 

 

Ouve-se uma gargalhada forte, coisa d’Além, que faz o MARUJO se ajoelhar e segurar o sextante no peito.

 

 

 

 

 

 

Fala o

VELHO

 

Em gravação.

 

 

 

 

sois justo mui justo justíssimo

ó meu rapaz que como poucos sabes amansar o Mar

que a História aprenda a te amar

como sábio achador deste recanto tropicalíssimo

 

 

 

Como que perdido na cena, o MARUJO olha em volta. E para cima como para baixo. Corre a sentar-se na pipa, que parece ser o seu refúgio. Não existe mais sinal da voz do VELHO. O foco desaparece e fica em cena somente a luz da candeia. Como que a falar para o sextante mas também para a plateia, o MARUJO volta a ser o centro da cena.

 

 

 

 

Fala o

MARUJO

 

 

 

vi em João o sábio humanista e em Manuel os vagares

da burocrática realeza mas ambos em seus anseios

eram o Vaticano e eram a Ordem de Cristo porque embora não o pareça

é da Ordem o patrimônio sejam as terras sejam os gentios

do Achamento e da Posse que os arreios

do imperial e místico Poder desconhecem outros feitios

 

 

na vera calenda o Velho de outros navegares

já da Insulla Brazil sabia e em Tordesilhas vieram os meios

que ao Luso deram essa Distância pois era o Luso a moral fortaleza

que a Fé cristã tinha ó Esmeraldo de Situ Orbis e os esteios

da evangelização sob fogo e espada nos bandeirantes rodeios

da santa inquisição e outros fervores entre e contra os Índios

 

 

 

e eu que Duarte Pacheco Pereira sou em artes

do viver o Mar e dele os esplêndidos sítios

vou-me feliz por ter achado o que agrega

no Luso o outro Portugal talvez por sítios

sempre antes navegados por outros gentios

outras artes e falares e feitios

 

 

Encostando a cabeça no sextante, o MARUJO fecha os olhos no mesmo instante em que a luz da candeia vai desaparecendo até deixar a cena no escuro.

 

 

 

 

 

 

 

F I M

 

 

 

 

João Barcellos

 

Romancista, ensaista, poeta e consultor cultural, autor de "Morgado de Matheus" (ensaio), "Brasil – 500 Anos" (coletânea de ensaios), "O Outro Portugal" (romance diaspórico) e "Exuberância e Folia No Mar de Longo" (poema épico), entre outras obras, escreveu a pequena peça dramático-poética SÁBIO ACHADOR, em 2000, durante uma das viagens que fez para a Europa depois de uma conversa com o ator e diretor Perry Salles sobre a odisséia fantástica do cosmógrafo e marujo Duarte Pacheco Pereira.

 

 

 

Notas Bibliográficas

 

LIVIO FERREIRA, Tito – "Portugal No Brasil e no Mundo", Livraria Nobel, São Paulo-Brasil, 1984.

 

RAPOSO COSTA, Jaime – "Os Descobrimentos Portugueses / Pedro Álvares Cabral e o Brasil", Ediç. do Autor com o Conselho da Comunidade Portuguesa do Estado de São Paulo, 1988.

 

BARCELLOS, João – ‘500 Anos De Brasil", ensaios, Edicon, São Paulo-Brasil, 2000.

    • "O Outro Portugal", romance, Edicon, São Paulo-Brasil, 2000.
    • "Exuberância e Folia no Mar de Longo", poema épico,

São Paulo-Brasil, 1989.

 

PACHECO PEREIRA, Duarte – "Esmeraldo de Situ Orbis" (Séc. XVI)

 

CORTEZÃO, Jaime – "A Expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil", Portugália Ed., Lisboa-Portugal.

 

 

 

Tábua Histórica

 

1415 – O Infante Dom Henrique funda em Sagre uma entidade náutica.

1418 – O Papa Martinho V nomeia o Infante Dom Henrique "grão-mestre"da Ordem de Cristo, fundada por

el-rei Dom Diniz para proteger os Templários e desobedecendo às ordens do Papa Clemente V,

que banira, em conchavo com a França, a Ordem do Templo.

1455 – O Vaticano, com o Papa Calixto III, concede jurisdição eclesiástica ou espiritual sobre as terras

achadas e a achar sob bandeira da Ordem de Cristo.

1490 – Na costa do pau-brasil portugueses constroem um forte e batizam-no de fernãobuc (hoje, Pernambuco).

1494 – Tratado de Tordesilhas, em Espanha. Sob os auspícios imperiais do Vaticano, o mundo é dividido entre

Portugal e Castela; Duarte Pacheco Pereira assina como cientista e testemunha de Dom João II.

1498 – Duarte Pacheco Pereira, a mando de Dom Manuel I, faz o reconhecimento da famosa Insulla Brazil

para o patrimônio da Ordem de Cristo.

1499 – Pinzon e outros castelhanos costeiam a Insulla Brazil.

1500 – Sob bandeira da Ordem de Cristo, e nunca do Reino de Portugal, o fidalgo Pedro Álvares Cabral toma

posse da Insulla Brazil a meio caminho para a Índia. De Lisboa a Porto Seguro é pilotado por Duarte

Pacheco Pereira, Mestre João e Bartolomeu Dias, entre outros. Embora Caminha escreve a primeira

crônica de Cabral para Dom Manuel a mais importante sobre a Província de Vera Cruz é a escrita

pelo Mestre João e diretamente entregue ao rei e, nela, solicita ao mesmo que compare a Ilha agora

tomada com a indicada no mapa velho de Pareto. Duarte Pacheco Pereira escreve "Esmeraldo de Situ

Orbis", crônica da sua ação científica e de marinhagem sob as ordens de Dom João e de Dom Manuel,

enquanto a Insulla Brazil é agregada ao patrimônio da Ordem de Cristo.