Lendo Poemas de JB
ou a Vera Luso-Brasilidade

 

 

Por

Tereza de Oliveira

Paris, 1998

 

 

Ouvi-o recitar dois poemas, um na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis (SC), e outro na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Nos dois casos, após suas palestras Entre Machado de Assis e Fernando Pessoa e O Fazer Poético. Um conferencista de alto nível. Isto, no iníco dos Anos 90. Depois, conversamos muito, fundamos o Grupo Granja, em minha casa, 3 anos depois, e, quando decidi viajar por um longo tempo atravessando a Europa, pude ler, via fax uma vezes e via e-mail outras, já no final dos Anos 90, as suas palestras sobre o físico Mário Schenberg, também écologo, e as duas partes de O Peregrino - estas, em companhia de Joane d’Almeida y Piñon, física, e de Marc Cédron, psiquiatra e ecólogo, quando nos encontramos na Áustria. E tudo isto, com dois romances publicados e dois na Internet (Rio-Romance Na Cidade, sobre a violência urbana e a corrupção; O Outro Portugal, uma síntese fantástica do ser-português além da terrinha). Escrevo sobre o romancista, contista, poeta, pesquisador de história, repórter-editor e consultor cultural João Barcellos.

 

Quis, depois de tantas e boas conversas lítero-culturais no Grupo Granja, fazer uma leitura da luso-brasilidade que encontrei em seu Outros Escritos. Pedi a Marc Cédron alguns velhos poemas de João Barcellos, que ele retirou do baú, e que tivessem sido escritos em Portugal e no Brasil. Enviou-me 7 poemas ("Eu e a Joanne escolhemos entre centenas. A maioria não tem data. Que sirvam para o teu trabalho", escreveu ele). Iniciei a leitura por um "brasileiro", passei para outros de ritmo bem minho-galaico e terminei com outro de ginga bem tropical.

 

Lendo e cantando os versos viver a Vida/ é encontrar em outro Ser/ a semente que nos faz Energia e nos ilumina/ os caminhos, encontro a poética que bebi naquelas duas palestras. É a fantástica universalidade do ser-português: somos caminhos/ somos nós aquele Ser/ que aprendendo a Estar vivificando/ o instante poético/ é Árvore... É como se um português de veia céltica tivesse baixado entre os nativos americanos para cantar viver a Vida/ é ser Luz/ ser Luz/ é ser Vida. Vamos ler, cantando, o poema?

 

 

 

 

Viver

 

viver a Vida

eu sei que não é coisa fácil

não é o mesmo qu’Estar e dizer vou vivendo

não é o mesmo que amar sem prazer

buscar outras razões no dizer

 

viver a Vida

é encontrar a Alma que somos

no olhar a Árvore que vive dando-nos Vida

no grão da semente que vai no Vento

e gera outra Floresta

 

viver a Vida

é saber das linhas d’outro Ser

a alquimia do desejo

é Ser e é Estar

pela demanda d’Alegria

é aprender a colher no corpo d’outro Ser

o Amor amoroso que dá e recebe em Prazer

 

 

viver a Vida

é vivificar o instante poético

de uma entrega

é cantar a íntima e sublime entrega ao Universo

que nos rodeia sem deixarmos de ser o que somos

na profundidade desse Prazer

 

viver a Vida

é encontrar em outro Ser

a semente que nos faz Energia e nos ilumina

os caminhos

porque amando somos essência divina

pergaminhos perdidos da Razão

eis que amamdo a Alma ilumina

todos os caminhos

 

viver a Vida

é ser Luz

ser Luz

é ser Vida

 

aí somos caminhos

somos nós aquele Ser

que aprendendo a Estar vivificando

o instante poético

é Árvore

é Semente

é Amor

é Alegria

é Alquimia

eis que goza gozando

é Vida

é Luz

 

saibam todos

que Amar

é Estar

cântico sublime

paraíso procurado

rebeldia d’instintos no prazer d’Estar

Amar é ser todos

 

eis-nos que vamos

e indo nessas águas de prazeres à flor da pele

eis as sortes na palma da mão

sutil revolução

que nos serve

no instante em que amamos

 

somos tudo quando aprendemos

a viver a Vida

somos tudo quando sofremos

amando a Vida

 

 

 

 

 

 

 

É impossível não escutar em nós o eco da intensa luminosidade que os trópicos oferecem a todos os povos. O poeta está, aqui, já imbuido de toda a carga emocional que é conhecer o Brasil no seu "conjunto místico-mítico carregado na musicalidade da sobrevivência", como ele próprio gosta de definir este país povoado por portugueses e feito nação na miscigenização luso-afro-americana.

 

Sente-se no pulsar de cada verso que o poeta não buscou na pressa uma adaptação à sua nova circunstância de "português no mundo através do Brasil". É como se o Brasil já o aguardasse, ou fosse uma sorte antes traçada no seu fado minho-galaico de fortíssima tradição céltica, ou seja, o andarilho vestindo o marujo em bom caimento.

 

Em um poema escrito no Portugal pós- 25 de Abril (ou, o Golpe de Estado de 1974), João Barcellos é o "filho do Luso" com o olhar nas possíveis maresias entre o cotidiano e o romântico viver. Lendo, podemos ouvi-lo nesta balada

 

 

 

 

O Mar

 

I

Sempre ele,

querida. Sempre ele em fundo

a sussurrar-nos o ímpeto

da coisa boa; ele nos lembra o odôr

das noites longas

em tenda armada ali

perto, os câlidos beijos dos corpos

nús enlaçados.

Lindo é sentirmo-nos

na maresia encantada do amor!

Com as estrelas ali

em cima. Com o luar

a iluminar aquele

 

II

som de paz.

Nós, feitos num oito e sem palavras com os olhos dizendo "sempre ele"!

 

 

 

É ou não é a maresia à flor da pele? É, também, "o português por inteiro doa a quem doer" - ele mesmo o diz, ele mesmo canta em si o projeto único de Portugal: ser Portugal. João Barcellos alcançou-o realizando-se como intelectual contra todos os mofos acadêmicos.

 

Um alcance tão iluminado que ele só poderia encontrar par em outros faróis eternamente acesos. Quando assisti à sua palestra sobre Florbela Espanca, na Biblioteca Cecilia Meireles (em Cotia-SP), uma frase-poema ficou em mim: "A mulher, como qualquer outro Ser, acontece construindo-se humanamente. Assim fez-se o Povo Português e Portugal, assim os bascos e os galegos são o que são há séculos e séculos. Florbela e Rosalía ainda acontecem como exemplos do Ser em construção, pois, ninguém vive a Vida sem provar o Amor!" Não por acaso, além da sua sublime compreensão da obra singular de Florbela Espanca, ele sintetizou em vários poemas a sua admiração pela galega Rosalía de Castro, inclusive em um ensaio curto de grande profundidade temática (em que ele é mestre). Neste poema que se segue, e que felicidade a escolha de Marc e de Joanne, toda a telúrica postura do poeta:

 

 

 

 

 

 

Em Memória De

Rosalía De Castro

 

 

O mar não é coisa

assim tão longe de nós,

é bem a lágrima que na loiça

deixamos cair, entre os pós

 

das eras de sempre,

ó Rosalía. As terras que amamos

são aquele presente

que, único, nunca deixamos

 

às mãos d’outros. É que o amo

vivido e deixado pelos prados

é esse xadrez do primeiro clamor

poético. Belos prantos

 

no dizermos a vida

pelo oculto desejo de a ter

sempre assim parida,

como a neve a derreter!

 

E quando nos descobrem o tesouro

escondido... Ah!, porque "era dolor

y era cólera" assumimos ess’outro

que responde pelo amor

 

guardado nos pós da existência

que somos: loiça frágil,

como as rosas dos campos, saliência

romântica e primaveril!

 

Forçam-nos a gritar Não!,

as jogar as pedras,

"a xustícia pola man"

na defesa das eras

 

que o solo pátrio testemunha

provando no nosso amor

o riso íntimo e a bruma

do sentimental calor.

 

Descansa minha amiga

Rosalía,

que é já do povo cantiga

a tua poesia!

 

Somos o mar? Sim.

Essa coisa que as terras beijam

a glorificar o jardim

que os corajosos semeiam.

 

 

Aqui, respira-se a comunhão das culturas minho-galaicas de tanta tradição na evolução e na musicalidade da Língua portuguesa.

 

 

Outra característica na vida singularmente plural deste luso-brasileiro é a sua repugnância pelo Terror(rismo) que estados e instituições cívico-religiosas patrocinam debaixo do manto de uma legalidade que nem as eleições livres legitimam. Impressionou-me um seu improviso, no Rio de Janeiro, sobre esta questão: "Ninguém, em sã consciência, deve ser tido como honesto quando não assume a sua postura sociopolítica, ou militar, pois, isso é um atentado à cidadania coletiva que embasa o espírito democrático". É algo que o poeta não admite, vai contra si-próprio se fôr o caso para obrigar outros a dizerem o que são. "Quem se esconde sob as próprias palavras é tão falso como as instituições ou as pessoas que diz combater pelo bem comum"... Chega a ser reacionário, para os da esquerda e para os da direita, nesta sua posição intransigente: é o preço de ser Poeta na demanda do instante da sensação do "ser que o é estando" - por isso, o Maldito!

 

Quando estava lendo as peças de Outros Escritos, a ser publicado em São Paulo, chegou-me cópia do poema O Poeta E O terrorismo, um opúsculo libertário que corrobora a opinião que do assunto já formulei. Aliás, só João Barcellos pode(ria) lançar-se em uma aventura estético-poética com esta dimensão ideológicamente anarquizante onde a Utopia tem assento e tem voz...

 

 

 

duas faces

de um Terror

que o é porque o somos,

e ser do Terrorismo

é criar impostos

garantir a Vida para uns

e a Morte lenta para quase todos,

é violentar a Luz

com as Trevas não anunciadas,

é falar por todos

em minoria imposta

por galante aforismo,

eis que somos

o Terror

e suas faces

 

A leitura desta parte de O Poeta E O terrorismo diz tudo. Um poema de 1998 que, creio, navega já na www através da cotianet.com.br como, de resto, boa parte da sua Obra. Neste poema ele respira a violência total contra a Ignorância consentida e subsidiada pelos poderes político-religiosos.

 

E logo - ai, permito-me utilizar aqui um das suas expressões de conferencista - , e logo, a magia abstrata e quase geométrica da poesia de Raul de Carvalho, que conheceu em Lisboa, e sobre o qual nos lembra de um viver entre as sombras/ e as vozes (...) a inveja das gentes/ a afogar as entranhas. É a passagem do salazarismo para a primavera caetanista e, enfim, o golpe de estado de 25 de Abril de 1974 - o Portugal de portas abertas para o mundo, tão precariamente como há 500 anos!... Na poética de Carvalho, que JB conheceu já na última fase, ele encontrou uma das melhores referências estéticas daquilo que ele-mesmo afirma como "resistência cultural às oligarquias do mando intolerante, à esquerda e à direita". Eis o cântico da inquietude:

 

 

 

a

Raul De Carvalho

 

 

folhas

caindo na estrada

entre um sol tímido

 

coisa pálida

 

e o corpo

a sentir-se

no pico de uma vida d’apreensões

 

náuseas

 

uma alegria aqui

e acolá

 

emergindo pelo mágico novembro

de um viver entre as sombras

e as vozes

 

a quietude

do tempo a ferir

as entranhas

como as folhas

caindo na estrada

 

e o corpo no picar do tempo

e a ingratidão

e a inveja das gentes

a afogar as entranhas

como a chuva miúda tragando as folhas

 

caídas

 

entre a timidez

do sol

 

que os olhos nem tanto enxergam

 

a vontade antiga

de nunca ser feliz se um dia se realizou

foi pela ingratidão

a inveja das gentes

incapazes d’olhar a poesia

daquela

 

cara pálida

 

sol tímido coisa

a iluminar na estrada

as folhas

 

 

 

Com João Barcellos retornamos sempre (e sempre é uma palavra-chave e de peso na sua Obra), e sempre!, ao amor. Se não me bastasse Paixão d’Amor & Energia (in Outros Escritos), tenho o prazer de ler nada mais me apetece que a procura desse mundo/ quando anoitece/ ‘inda o sol moribundo... Ai, adiante, adiante, sigam o ritmo bem lusitano desta doce e alquímica recordação de uma mulher que foi ícone da liberdade sexual:

 

 

 

Em Memória De

Anais Nin

 

 

 

 

o toco de cêra

leva uma chama

luzinha de cêra

qu’embala

 

nada mais apetece

que a procura desse mundo

quando anoitece

‘inda o sol moribundo

 

ficar doido d’alegria

ao olhar em redor após a primeira vez

a terra toda tremia

a umidade dos corpos a bandeira

 

o desejo embala

a luzinha de cêra

da vida uma chama

que vai no toco de cêra

 

 

A autobiografia poética Eu, de 1991, e o verso só sei amar amorosamente à luz de mim, são peças lapidares do Estar universalmente telúrico deste poeta. Para amar assim o poeta põe "as sensações acima de tudo, seja pelo prazer de estar em e com alguém, seja pelo prazer da doação sem limites" (pós palestra Os Celtas, São Paulo-1997). Ninguém se diz "em parceria onírica com Anais Nin" gratuitamente... Mas, se no poema para Nin ele é o europeu em fantasia, no poema Amor é o português miscigenado na cultura e no ritmo tropicais que o Brasil generosamente lhe pôs nos caminhos de andarilho!

 

 

Amor

 

essa palavra

fere minh’alma com alegria

a imensa alegria

que me resgata

 

absorvo imagens

na crueldade estática das coisas

que somos e que me rodeiam

nem sei às vezes

o que sou

sinto o caos e o vazio e o tudo

que sei é o nada

não me basta somente a energia do corpo

a do meu e às vezes a de outro

no amplexo fabuloso que faz dois em um

há em mim abismos

há em mim crises

há em mim a divindade do todo

há em mim o eu

e uma pólis d’outros como se nuas esquinas

arquitetura sublime

levando-me ao limiar desse todo

 

ao desejo d’amar

de me oferecer em carinho

para me sentir um eu leve entre sexos

que se entregam e não o animal que procria

e reinicia seu ninho

no eerno caminhar

 

o livro da minha vida é um’alma

que m’ensina a vivificar

a amar

em mim a crença da viv’alma

 

a hora é sempre zero

 

não m’iludo

quando me vou levemente e com carinho

e com desejo no abraço de quem quero

caminho único

que me resgata e vivifica

porque me dou e me completo

e sei que quando deixo de ser eu nesse ato

d’estar e ser sexualmente

realizo a fantasia maior que existe em mim

ora não m’iludo

o meu em outro corpo

não é a mera busca do prazer carnal

eu sou eu amando

que outro corpo desprende-se deste abraço

e eterniza-se no ondear dos desejos

oh loucos desejos d’êxtase

esses em que minh’alma é um beija-flor

dando e não tirando o néctar da flor

eu sou eu amando

sou

e estou

neste amar eis a percepção

do algo além de mim

do espelho que é e está na pessoa que amo

do não-limite que o ato sexo-e-mente

me faz viver

sem agredir o eu nas suas emoções outras

e se me vou no prazer-alegria

não m’iludo

quanto ao que sou no ciclo telúrico e cósmico

e simplesmente carnal

 

o amor

eis a palavra-magia

 

amor

 

ninguém adivinha o que e quando vem

sentindo a emoção

tudo queda pasmo em muda revolução

 

 

Pelos escritos de João Barcellos encontro, ou melhor, encontramos a Utopia que poucas pessoas atrevem-se a viver e, menos, a demonstrar. Quis, neste breve esboço sobre ele, mostrar o quanto o Brasil foi e é um porto seguro para a paz e o progresso deste intelectual!

 

A vida continua.