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OS CELTAS Melodia & Ritmo Gaita-de-Fole por João Barcellos Palestra no Espaço Mizar Cristal, Cotia, S.P., Brasil - 1999
I
Fazer uma leitura sobre o saber-do-povo ou, o "folk lore" - como dizem os britânicos, no que se refere à Música, é fazer uma viagem aos primórdios da Comunicação de Massas, aos tempos ancestrais das necessidades tribais dos chefes de Clãs e seus teocratas nas exigências da disseminação do Conhecimento entre guerreiros, camponeses e artesãos - i.e., a Comunicação entre Senhores e Servos ganhou uma mistura entre a voz-do-mando e a fala popular de sabedoria feita.
Mas, como erguer uma ponte de ligação entre uns e outros? Existia uma ligação mítico-telúrica entre quem lia os Oráculos (sacerdotizas e sacerdotes), ora para os Senhores ora para os Servos, mas era uma ligação que mais inspirava receios do que alívio ou esperança... A ligação não poderia ser tão seca, tão primária e institucional.
Cerca de 3.000 anos antes das conquistas místico-bélicas que construiram a Era Cristã, um povo genericamente denominado Kelt (Celta) estava distribuido em tribos pela região que hoje conhecemos como Europa - e, esse povo, de característica indo-européia, tinha um sistema de vida teocrático embasado no matriarcado pelo qual a Mulher, relegada para segundo plano a partir da Era Cristã, exercia todas as principais tarefas e funções organizacionais em pé de igualdade com o Homem.
O Povo Celta tinha, então, uma Cultura própria: dela surgiram as primeiras concepções de estrutura militar com chefes guerreiros e de estrutura legislativa, logo... e novamente, a necessidade imperiosa de uma ponte fez-se sentir entre a vivência mítico-telúrica da Vida e o entendimento social em cada Tribo.
Observando a cadência silábica da fala da Sacerdotiza na leitura do Oráculo, os artesãos celtas, enfim, acharam a ponte. E só poderia ser, na verdade, uma ligação artística. O que eles acharam? Os pastores e os camponeses utilizavam já e em diferentes parte da Terra instrumentos rudimentares para identificarem-se com os rebanhos - eram Instrumentos de Sopro; aí, os artesãos conceberam a solução com a ajuda dos teólogos: era a ponte que iria adocicar a árdua Vida daqueles tempos. Ainda que rudimentarmente, desenvolveram a Gaita (do gaélico ghaid, q.s. "cabra") para que pudesse acompanhar em Melodia aquele Ritmo poético que fazia ecoar a Sina ditada na fala da Sacerdotiza. E então nascia, diga-se assim, aquilo que convencionou-se denominar como Música Popular (ou Folclórica) servindo o sistema teocrata, tal como as canções que hoje ilustram os serviços religiosos, no Ocidente, e os mantras, no Oriente.
II
"Os Druidas, ao ouvirem os oráculos da Voluspa, aperceberam-se de que estes estavam sempre contidos em frases medidas, de uma forma constante, trazendo consigo uma certa harmonia que variava conforme o tema, de maneira que o tom em que a profetiza pronunciava as suas frases não diferia muito da linguagem comum. Eles examinaram com atenção essa singularidade e, após (...) imitaram as diferentes entonações que ouviam, conseguiram reproduzi-las e descobriram que elas possuiam coordenadas com regras fixas", como nos ensina o historiador e escritor Antoine Fabre DOlivet (1767-1825), na sua obra "História Filosófica Do Gênero Humano" (editada em 1905, Paris - Fr., pela Librairie Générale Des Sciences Occultes). Este intelectual francês, vilmente perseguido por Bonaparte e pelo Vaticano, escreveu obras como "A Essência e a Forma da Poesia", "Música" e "Considerações Sobre o Ritmo", o que nos garante a discussão profunda deste estudo sobre a Cultura Céltica.
As tais "frases medidas" eram o Lai: a tradição da Música Monofônica (i.e., para uma voz e sem acompanhamento instrumental) vem do Canto Oracular Celta, anterior ao Canto Gregoriano (ou Romano), por isso denominado de Rito Galicano. O Lai, que Richard Wagner refere em Tristão e Isolda, é esse falar cantado das liturgias célticas que cita DOlivet. Só a partir do Séc XIV é que o Lai foi estruturado com "12 Estrofes" no âmbito de um acompanhamento polifônico sob controle para uma variedade métrica..
E então, foi durante o cerimonial dos cultos - como já mencionei: um rito mítico-telúrico embasado na essência feminina - que o Celta achou a Melodia entre a constante sonoridade da fala poética da Sacerdotiza (ou Voluspa), e o Ritmo, entre tempos fortes e fracos.
Em texto editado na "Cotianet" e o jornal "Gazeta de Cotia" (em Março de 1999), sob o título "Gaita-de-Fole: Uma Cultura Céltica", recordo que na "(...) velha Escócia do Séc. XII era comum aos clãs o uso da Gaita-de-Fole na celebração dos ritos da fertilidade, natural e humana, e no adeus aos entes queridos (...) a Gaita-de-Fole até hoje é como um idioma musical celebrando o passado (...) do Povo Celta".
Durante o Séc. I da expansão cristã, ou o aguerrido "catolicismo" do Cristianismo, e já submetidos ao poder romano, os Povos Celtas foram aos poucos submetidos também à inquisição papal, e então, a sua estrutura cultural, militar e social foi desapropriada em favor principalmente do novo poder religioso - sendo as regiões célticas mais afetadas, a Irlanda, a Península Ibérica e a Alemanha; a Escócia, que melhor resistiu à inversão dos valores culturais célticos, conseguiu preservar muitos dos seus simbolos - um deles: a ghaid, ou Gaita-de-Fole...
III
Por que falar sobre a Gaita-de-Fole se não é um instrumento musical tão conhecido abaixo do Equador, embora seja tradição entre povos de cruzamento céltico?
Quando os conquistadores, colonizadores e povoadores portugueses, a partir de 1500 dC, tomaram posse da Insulla Brasil - como era indicada esta parte das "américas" no mapa de Bartolomeu de Pareto (e que o físico Mestre João lembrou em carta ao Rei D. Manuel, a par da de Caminha) -, uma das peças da sua cultura musical popular era um instrumento do seu passado céltico: a Gaita-de-Fole.
A vida cultural luso-brasileira teve grande desenvolvimento no Rio de Janeiro oitocentista, mas já na São Paulo setecentista o capitão-general D. Luiz António (o Morgado de Matheus) fez surgir os saraus (encontros artísticos) e os te deuns (cânticos de louvor - ou, ritual religioso cantado) nos quais um dos instrumentos... além das flautas, violinos e violas, era a Gaita-de-Fole. Relatos setecentistas dizem-nos também da sua utilização popular e cerimonial em povoações da Paraíba e de Minas Gerais... Eis que a Gaita-de-Fole, para espanto de muita gente!, já teve o seu momento na cultura luso-brasileira.
IV
Gaita-de-Fole
a água que de mim escorre ao chegar junto do ninho dáguia reflete um passado e um futuro qual pedra rúnica que bate em meu ser com som cristalino a minha sombra como que um relógio-de-sol aponta para o vale verdejante selvagens corcéis entre tambores e gaitas e aqui junto do ninho dáguia amei no prazer de viver e aqui soube do amor o hino que os deuses em nós habitam
deuses adejam som cósmico ontem um adeus hoje a festa desejos meus outro cântico os deuses falam
do sopro vem o hino os deuses em nós habitam
em meu ser o som cristalino vinho em cálice telúrico o meu fado rúnico junto do ninho dáguia gaita-de-fole em mim explode
(Serra do Gerês - Port., 1979)
V
Os artesãos celtas acharam a Ghaid como seu primeiro instrumento musical para suporte da Melodia que acharam na Fala Poética oracular; mais tarde, e tendo a Ghaid praticamente como bocal, chegaram à concepção da Gaita-de-Fole.
Como Foi?
Os músicos precisavam, também eles!, de uma ponte entre o sopro e a execução musical mais longa. A idéia foi tirada do fole-de-ferreiro, instrumento de um dos artesãos mais notáveis da época céltica: adaptar um fole de couro a um tubo perfurado e com uma palheta (do tipo "livre") -o Ar entra por um tubo superior soprado pelo tocador e uma válvula impede o seu retorno; o tocador compime o fole com o braço para da pressão dar e fazer vibrar a palheta... Depois, adaptaram-se dois e três tubos... E então, a Gaita-de-Fole ganhou nomes como Gaita Galega (na Cultura Minho-Galaica), Cornemuse (entre gauleses/franceses)e BagPipe (entre irlandeses, bretões e escoceses).
Desde o Séc XIV a Gaita-de-Fole é um instrumento marcial entre os escoceses: já entre os irlandeses, ela é também marcial (dita War-Pipe), sendo ativada pela boca e mais social (dita Union-Pipe), ativada pelo fole, e para eventos em interiores; no caso inglês existe a Northumbrian-Pipe, ativada (ou soprada) com fole; e, na Índia, a Gaita-de-Fole é de bambu com uma palheta e um bordão preso a um odre de pele de cabra.
Outro instrumento construído sob o mesmo princípio do fole de couro como peça intermediária é o Realejo (na verdade, um orgão portátil).
Como é do conhecimento geral, a Música estuda-se, genericamente, através dos segmentos modal (no qual inscreve-se o tipo mitológico e comunitário, logo, folclórico - ou, a ação musical na sua ênfase popularmente festiva e menos erudita), tonal (o tipo polifônico que levou à erudição musical, ainda durante o período medieval da Europa) e, como alguns pesquisadores defendem hoje, serial (o desdobramento da práxis musical em formas radicalizadas, como o jazz, o rockn roll, o punk, o blues, etc, etc, além do mix entre o folclórico e o erudito). Neste breve apontamento sobre a Gaita-de-Fole interessa(-nos) o segmento modal - aquele em que uma Tônica Fixa assegura o fluxo da linguagem musical popular e, às vezes, como entre os Clâs Celtas, cria uma unidade institucionalmente comunitária. No espectro da História da Música é aqui, neste segmento de estudos e práticas, que situa-se a Gaita-de-Fole. Todos os grandes historiadores, do grande Heródoto ao chinês Sima Qian passando pelo árabe al-Tabaric, o romano Tito Lívio, e os mais recentes, como o italiano Maquiavel, o francês Antoine Fabre DOlivet e o brasileiro Mário de Andrade, entre muitos e muitos outros, falam-nos do uso de instrumentos musicais de sopro quer em rituais tribais e palacianos quer em batalhas. Referências dos cronistas Aristófanes e Platão lembram-nos que a Gaita-de-Fole já era apreciada até entre gregos e egípcios, demonstrando mais uma vez a grande dispersão cultural céltica que cita DOlivet. E, na Roma imperial, este instrumento era denominado como Tibia Utricularis: aqui, a Gaita-de-Fole ganhou também a simpatia palaciana e popular. A Gaita-de-Fole tornou-se, após a Queda do Império Romano e as lutas intestinas nas ilhas "britânicas", o simbolo nacional escocês por excelência, o que levou o escritor Walter Scott a escrever que "doze escoceses e uma gaita de fole fazem uma rebelião" ("twelve highlanders and a bagpipe make a rebellion"). E é na Escócia que a Gaita-de-Fole tem presença musicalmente mais marcante, hoje: artistas compõem peças do tipo popular (ceol-beag), como marchas e danças, e do tipo erudito (pibroch ou ceol-mor), como baladas para contemplação e rituais.
Historiadores da arte musical, como Câmara Cascudo, José Miguel Wisnik e Mário de Andrade, no Brasil, ou Michel Giacometti (um corso radicado) em Portugal, pôem a Gaita-de-Fole como uma espécie de instrumento musicalmente especial.
Dos encontros minho-galaicos dos quais participei recordo, e é difícil esquecer..., o continuísmo da nota grave que sai do fole enquanto é dedilhada a flauta. É um "largo sopro", como eu mesmo tentei definir, em 1979 (La Coruña, Galiza-Esp.), "que nos sitia, faz-nos perceber o (nosso) chão". Talvez por isso, a Gaita-de-Fole serviu os exércitos celtas e serve, ainda, o exército escocês.
(Terminando, lembro a presença telúrica e cósmica da Gaita-de-Fole acompanhando a invasão da Normandia que acabou com a barbárie hitleriana... Foi como que uma apropriação coletiva da terra sob aquele largo sopro.) |