Cultura & Poder Público

por João Barcellos*

 

 

 

 

Um dia, um coordenador municipal de Cultura

projetou um Centro Cultural com Biblioteca

central ligada a outras mais pequenas na

periferia, Teatro e Cineclube. "Você está doido,

isso é coisa de primeiro mundo, coisa que

não pega em terra de político analfabeto e

Povo desligado do Poder", ouviu ele da (ainda)

maioria que é e faz o Brasil no final

do Séc 20.

 

 

 

 

 

 

1. Como Que Apresentando A Questão

 

Quando se ouve um baião na voz de Luis Gonzaga ouve-se a alma de um Povo construindo a sua própria Cultura depois da bestial Colonização portuguesa no Brasil; quando se ouve um tango na voz de Gardel sabe-se que a Argentina é o mais europeu dos países sul-americanos; e, quando se ouve uma balada coimbrã na voz de Zeca Afonso ou um fado na voz de Amália Rodrigues, sabe-se que a Europa das fronteiras nacionais começou com Portugal e que o mundo moderno iniciou-se, também, com as miscigenações geradas nas conquistas colonizadoras dessa mesma gesta lusitana, como se verifica no entrosamento afro-brasileiro das melodias do fado... tão dengosamente aprimoradas por Chiquinha Gonzaga.

 

 

2. Da Tradição

 

O som grave de uma gaita-de-fole leva qualquer pessoa, interessada em História, ou na Cultura geral, para as profundezas celtas e gregas e hindus que estiveram na base do comunitarismo; tal como os versos da Poesia também a Música possui o gosto da Terra que é estação cósmica para a Humanidade. Descobrir esta Humanidade pela arte de Estar e de Ser que faz de cada Povo uma bandeira pátria é descobrir que nada funciona sem o senso comum da Saudade - porque o presente o é pelo caminho percorrido, ou seja, cada Povo ergue uma Cultura que lhe é peculiar, umas vezes uno no seu aparecimento, outras vezes embasado no cruzamento de várias experiências sócio-culturais. Se uma gaita-de-fole nos remete para algo culturalmente distante, embora que ainda presente em algumas manifestações nacionais, o som da flauta é-nos tão caro quanto os primevos atos de comunitarismo assente em arraiais democraticamente anárquicos!

 

O gesto rupestre de nos dizerem de uma Sociedade, em que cada um(a) é o Individuo e é a Comunidade, pelo desenho e pela pintura, condiciona também uma visão pragmática: vivemos porque vivificamos cada ato individualmente e, por este individual(ismo), criamos as raizes para uma Humanidade solidária.

 

Toda a Tradição feita no e do Saber-do-Povo, ou do folk-lore (como dizem os britânicos no âmbito da linguística deixada pelos velhos celtas), gera, como gerou, uma Cultura crítica e de rupturas apontando o horizonte social das alternâncias políticas sob as vistas largas de uma Cidadania sempre urgente.

 

Cultura não pode ser definida simplesmente como "popular" ou como "erudita" - Cultura é ela mesma consubstanciando as temáticas sóciopolíticas de cada bandeira pátria, ou seja, de cada Povo, de cada Nação e da criatividade individual; ela sobre-vive em razão dos interesses regionais pela Tradição e sob os efeitos daquela Saudade que sempre nos remete para o solo natal, seja qual fôr a situação. E, sem dúvida, uma grande orquestra regida por um grande maestro é tão importante quanto a viola dedilhada pelo poeta que canta teluricamente as sensações d’alma... Pode-se dizer que em ambos os casos, estamos diante de uma Cultura, e não do "popular" ou do "erudito". Quando o poeta acha pedra no meio da estrada logo o músico constrói uma onírica elevação sobre o obstáculo, enquanto o pintor, ou desenhista, e o jonalista, tratam de registrar tamanha Espiritualidade. E, aqui, onde está o "popular" e onde está o "erudito"...? Em nenhum caso, pois, nenhuma universidade "faz" o poeta, o pintor ou músico, como não "faz" o jornalista. Eis o mundo da Criação Humana sem os pre-conceitos que tantas vezes a destróem...!

 

 

3. Do Poder & Da Cultura

 

O pré-conceito instala-se na Sociedade quando as instituições governamentais vestem as etiquetas com as quais fabricam o Poder: é quando a bandeira pátria deixa de ser Tradição e vira instrumento para manter o Povo longe do ato de administrar a res publica.

 

Eis a razão que leva o Poder instituido, por sufrágio universal ou entre élites economicamente preservadas, a evitar atos que dinamizem a Tradição; para o Poder a Tradição é boa na condição de peça museológica, não como espelho de um passado criativo que fez o Progresso por rupturas sociopolíticas necessárias à transformação qualitativa da Cultura.

 

 

4. Monólogo & Diálogo

 

Quando falo de Tradição faço-o na plena consciência do gênero em Cultura, não do fundamentalismo sociopata que transfoma cidadãos em lixo humano: falo, sim, da Saudade de cada pátria em relação a si mesma e tendo a Tradição como baliza que permite refletir para perspectivar o futuro no presente!

 

Não interessa o monólogo dos sociopatas, interessa o diálogo construtivo de quem, em Cidadania culturalmente assumida, diz-se em Liberdade.

 

 

 

 

5. Da Precária Intermediação

 

Pôr no meio de uma conversa questões como Cultura e Poder Público é desafiar equilíbrios sociais pre-fabricados politicamente.

 

Existe um conceito religiosamente defendido pelo qual a Cultura é a anti-Estética do Poder, por isso, a Escola enfileira os Estudantes em carteiras, às vezes separa-os sexualmente e por cor de pele, e permite que essa Escola, aqui no geral, assuma unicamente parâmetros curriculares nacionais de vocação tão paternalista que esconde a real História do país - ora, eis um conceito que gera tendências socialmente anômalas e dirigentes desenraizados do contexto nacional. Nos países de Língua Portuguesa, ou lusôfonos, este é o conceito ainda em vigência. Infelizmente. E o Brasil, país continental e com uma Cultura fortíssima porque unida pela Língua, possui, por isso mesmo, um sistema educacional anacrônico e irresponsável. Cabe aos produtores culturais trabalhar pelo desiquilíbrio desta interação - i.e., forjar um novo conceito de Cultura.

 

 

 

6. Da Alienação

 

O Aprendizado do Olhar é algo que tenho como de muito e muito importante. E é a partir da infância que o Olhar deve receber uma educação especializada, porque o Olhar leva à interpretação do algo que nos rodeia e faz-nos Pensar. Por esta Linguagem da Imagem é possível apreendermos a Linguagem Cultural de uma determinada região e, no cruzamento dos dados, estabelecer pontes universais de encontro.

 

Concretizada no Brasil em 1997, a Municipalização do Ensino, sob regência dos parâmetros curriculares nacionais, aplica-se ao Governo brasileiro dos Anos 90 o mesmo conceito fascista do Governo português anterior a 1974, no qual a pátria deve(ria) assegurar "a evolução na continuidade" - i.e., a pobreza de espírito e alienação das massas para gáudio de uma élite pançuda...! Ora, municipalizar o Ensino implica dar condições sociais de trabalho pedagógico ao Professorado para trabalhar com o Olhar das crianças - esse Olhar prenho da Tradição veiculada pelos pais e avós. Mas... é exatamente isto que, por enquanto, não interessa ao Poder Público: o que interessa é quantidade de alunos e não qualidade de Ensino, o que interessa é Professorado mal pago e mal formado para servir de plataforma eleitoral nos municípios!

 

 

 

7. Da Desconstrução Da Cidadania

 

O descompromisso do Poder Público com a Cultura não é outro senão o compromisso com a alienação que transforma, por ex., Educação Especial para deficientes em caridade: é a desconstrução da Cidadania.

 

Este contexto mostra-nos o quanto a Ideologia Abstrata, que traduzo por Desconstrução da Cidadania, barra a manutenção e o fortalecimento da Cultura, seja ela de criação informal ou de apurado tecnicismo; pois bem, se a Tradição torna-se monumento pétreo fica, também, desligada da Sociedade que, quer queiram ou não, evolui universalmente depois dos eventos colonizadores do Séc 15 e a abertura de novos mercados... até culturais. Em determinado momento a Cultura regional, ou local, há de dizer: É hora! Como os políticos não "fazem" a Sociedade, somente a manipulam sob determinadas condições de Obscurantismo, ou de Ignorância subsidiada pelo próprio Poder Público, o que convencionou-se denominar como Cultura sempre apanha o trem do Desenvolvimento pela mão da Iniciativa Privada, corporativa ou individual!

 

 

 

8. Da Ordem Social Anti-Cultura

 

O discurso monológico (porque vertical) do Poder Público encontra na Cultura uma barreira naturalmente filosófica - e, aqui, nem a Igreja instituida como "poder" temporal tem vez!...

 

Quando o espectro cultural é dominado por uma "ordem social" dirigida verticalmente, de cima para baixo, a fim de obstruir a expansão da Criação e da Filosofia que todo o Povo cultiva naturalmente na sua Liberdade vivificante enquanto Pátria assumida, esse mesmo Povo vai re-Criar caminhos até que a guilhotina do seu Saber de experiência feito destrói aquela "ordem social".

 

E como o espectro cultural do Povo convive com todas as formas de Poder Público, eis que a Cultura é (sempre, eu creio!) o "patinho feio" da Sociedade civil em corporativismo sociopatológico.

 

 

9. Da Tradição & Da Cultura

 

É fato que a Cultura é uma manifestação tão horizontal que encontra-se democraticamente em qualquer lugar e em qualquer momento - e, talvez seja isto que leva o Poder Público a não "pensar" em pólos culturais de interesse geral e regionalizados, ou, quando se presta a dizer sim a uma "coisa" dessas, em vez de um tablado acusticamente dimensionado para Teatro e Música constrói um chão de cimento para penitenciar a Tradição que tanto o incomoda...!

 

 

10. O Futuro Com Os Criadores Culturais

 

O baião transformou-se em outro hino brasileiro, o tango é, além de hino, a bandeira argentina, o fado o é também para os portugueses, como o flamenco para os espanhóis, a cinematografia para os norte-americanos ou a música orquestral e coral para os alemães - ora, cabe mesmo aos criadores culturais, em seus segmentos de atividade (músicos, pintores, teatrólogos, artesãos, cineastas, etc), defender a Cultura e impôr ao Poder Público uma vera Ordem Social que o obrigue não só a conviver com a Tradição como a incentivar o seu desenvolvimento através de políticas direcionadas ao Patrimônio Nacional!

 

 

João Barcellos

escritor, consultor cultural, membro do Grupo Granja (GG)

e da Associação Nacional de Escritores (ANE)

Agosto de 1999, São Paulo - Brasil