O CINEMA E OS NOSSOS SINAIS

 

por João Barcellos

 

 

 

(...) eu sei

sou experimentado

porque vi

sou imagem corrida

percorrida

porque li

sou poder re-inventado

eu sei (...)

 

(JB in Na Força Dos Sinais - poema, 1975)

 

 

 

A leitura sobre o nosso mundo post Revolução Industrial é feita tendo como paisagem um Eu quase que absolutamente aprisionado às tradições ocidentais.

 

Quando a Valsa foi criada o Sujeito-individual(ista) ganhou as asas de uma liberdade que a Contredanse e a Polska (de onde a Mazurca e a Polonaise) não lhe davam porque enraizadas no conceito e na práxis do Sujeito-comunidade; até à Revolução Industrial o Ser Humano estava arreigado aos princípios solidários do comunitarismo, com esse evento tornou-se o-Ser-em-busca-do-paraíso-próprio no âmbito da nova filosofia econômica imposta pelo Capital(ismo). Esta filosofia já estava bem veiculada na estratégia ocidental e católica quando os portugueses abriram o mundo aos mundos em seus contatos mercantis pelo mar-de-longo; mas, ressalve-se, os europeus representam nesta época o ousado ser disciplinado nas agruras campesinas e nos rituais culturais do tipo Dança de Roda... Espírito social e cultural levado para as regiões de além Equador e, diga-se, revestido logo com o toque ainda mais gregário e solidário emprestado pelos escravos africanos! É este estilo campesino e solidário que a Revolução Industrial acaba por destruir em nome da política tecnocrática - pois, o que interessa é o Sujeito-individual(ista) e não o Sujeito-comunitário. Ora, quando os salões da Nobreza e da Tecnocracia Capitalista conhecem a Valsa logo tornam-na sua dança por excelência: não é mais o estilo matriarcal da velha cultura celta marcando o compasso da cotidianeidade, sim, o estilo patriarcal dominando a família sob o pre-conceito "dê-se à Mulher o reduto familar e ao Homem o mundo que irá dirigir". A ascensão do Capital com a sua burguesia tecnocrata absolutista vestindo liberalismo e democracia consolidava, em pleno Séc. 19, a nova leitura ocidental do mundo.

 

O olhar ocidental é contraditório em si, e basta verificar que os dissidentes soviéticos (mais precisamente nos Anos 80 deste Séc. 20) fugiam para as supostamente democráticas paisagens norte-americanas para retornarem (...?) às estepes no primeiro sinal de abertura política, ou, interpretar essa sinalização ideológica em livros como A Fogueira Das Vaidades, de Wolfe, para termos tal certeza. Mas, para isto, é preciso ler, ler, ler e ler, como ensina(va) Unamuno: algo que a Cinematografia nele apreendeu e, através da câmera, fez e faz a amostragem pura, ou crítica, e às vezes desconstrutiva para uma possível renovação. Ao olhar fílmico não escapa est’ A Aventura Semiológica como diria Barthes, ou antropofágica, na visão tropical de Oswald de Andrade. Aliás, Bacon já dizia que conhecimento e poder humano são sinônimos e, daí, as "ondas" de Toffler ditadas por esta maresia desconjuntural do olhar ocidental, que Charles Chaplin já havia rodado magistralmente em sua obra cinematográfica!

 

O olhar ocidental permite, sim, uma leitura vária mesmo que seus tentáculos policialescos continuem (um)a subreptícia caça às bruxas. Um dos paradigmas desta leitura é a Cinematografia – hoje, vanguarda linguística e tecnológica.

 

É interessante (a)notar que os primeiros curtas do Cinema registraram o Sujeito-comunitário e não o individual(ista), se lembrarmos dos documentários dos irmãos Lumière sobre a saída do operariado das fábricas, do tipo de registro humanista que, mais tarde, Jean Renoir retomaria no seu The Southerner , ou Gentil Roiz no retrato dos jangadeiros em Aitaré da Praia, nestes dois casos o amor à terra e ao trabalho... Eiseinsten, no seu Ivan, O Terrível, como Chaplin em Tempos Modernos e, mais tarde, os filmes de Kubrick, como Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol, ou António-Pedro Vasconcelos em Perdido Por Cem, como Luis Buñuel em O Charme Discreto da Burguesia ou Orson Welles em Citizien Kane, mostrar-nos-iam (como mostram, pois, o Cinema é uma Arte em registro!) a desumana loucura que a leitura ocidental das coisas e de nós impinge socialmente.

 

Fizeram da Cinematografia uma bandeira ideológica? Sim, quando esta Arte virou instrumento cultural do Estado (nos regimes nazi-fascistas e comunistas: os extremos tocam-se...), não, quando ela é produto cultural autônomo mesmo sentindo-se, em alguns casos, a influência do Poder Estabelecido por sufrágio universal (o que nem sempre significa Democracia)!

 

Através da revista francesa Cahiers du Cinéma (e depois pela revista portuguesa Cinéfilo) pudemos ler e participar, nos Anos 60 e 70, de acalorada discussão sobre a função social, política, cultural e estética do Cinema - e, como dizia Luis Delluc, da sua afinidade com o universo. Era o instante da Novelle Vague que, de certo modo, alargava os conceitos de cineastas como Eisenstein sobre o "cinema-realidade" e o "cinema-linguagem mutante"... E no entanto, a Cahiers du Cinéma - e ela sim!, foi na época um dos mais eficazes veículos da paisagem cultural ocidental absorvendo (como sua) a cortina de fumaça que (nos) impede às vezes de progredir, pois, é cortina de matrizes dogmáticas, o que até Jean Epstein já denunciava ao esventrar filosoficamente o "real imaginário" ocidentalmente imposto! O que se queria? Esse "real imaginário" tão badalado pela Novelle Vague e a produção de Hollywood ou a "magia artística" desenvolvida por um Cinema inserido nas circunstâncias gerais de cada Sociedade? A resposta é ambígua até hoje e, por isso, convivemos com o Cinema Técnico e o Cinema Arte às vezes numa mistura culturalmente fina de ambos.

 

Lembrando-me de algumas tomadas do filme The Fisherman Shoes (com interpretação soberba de Anthony Quinn) e d’ O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, vejo que o Capital(ismo) faz da Cinematografia uma indústria comercialmente viável mas não uma bandeira desse estilo de viver, embora possa ser tida como tal.

 

Está em jogo uma meta-linguagem em constante mutação. Veja-se que nos dois filmes que acabo de citar temos duas linguagens para uma mesma estética de Poder: no primeiro, a visão universal do(s) Poder(es) na Terra entre grandes potências econômico-militares, no segundo, a aculturação das massas pelo querer ser-estando, como diria Heidegger e, de certa maneira, também Derrida, tendo-se a religiosidade mecantilista como epicentro... aqui, não existem axiomas nem leis, é a pura simbologia do(s) Eu(s) em linguagens próprias e tantas vezes irracionais. E sabe-se: a Linguagem está diretamente relacionada ao fazer social, é seu produto...

 

Ao buscar neste jogo intestinalmente animalesco os roteiros para uma Cinematografia de vera estética social, o Capital(ismo) mostra que é mais "sociabilizador" do que o Socialismo ditatorialmente doentio. Assim, a Arte Cinematográfica – apesar dos irmãos Lumière e de Hollywood, diga-se! – é uma indústria cultural onde as linguagens cotidianas e tradicionais se cruzam e impedem que, enquanto Cultura ativa, as transformem em ícones de um determinado dogma...

 

Diante desta semiótica observo que a Cinematografia é uma comunicação visual em Eisenstein, Manoel de Oliveira, Rosselini, Griffith, Lang, Antonioni, Chaplin ou Glauber, um laboratório sonoro com Fred Astair e outros, e, ambos os tipos, em Copolla, Korosawa, Spielberg e Kubrick.

 

Se entre os Anos 40 e 80 o realismo levou o drama sociopolítico para os roteiros cinematográficos com Truffaut, Kusosawa, Fellini e, mais culturalmente contundente, com Fassbínder e Jean Vigo, nos Anos 90 a câmera deixou de ser a companheira de uma boa idéia para se afinar com as linguagens técnicas da sonoplastia e efeitos cibernéticos - hoje, dos curtas aos longas, a Cinematografia espelha a alta tecnologia através da qual o sonho ganhou outras asas... Mas, os nossos sinais, à luz da linguagem cinematográfica, são conexões mutantes qual sinalética visualmente sonora, tanto que Kubrick, Spielberg e Copolla já haviam experimentado o que denomino de loucura expandida no âmbito da leitura ocidental do mundo.

 

No post 2ª Guerra Mundial os filmes eram produzidos para o cinéfilo agarrar o eixo imagem-texto e refletir - sim, era um público culturalmente especializado (em particular na Europa) e existiam instituições (hoje nem tanto) do tipo Cine-Clube por toda a parte. No estertor da Era Soviética e vislumbrando-se o fim da Guerra Fria, nos Anos 80, os filmes começaram a mexer mais com o Sentimento, a Alma em análise e a Globalização tecnocrática do Sujeito-indivíduo que, então (como hoje), já não tinha/tem a noção daquele Estar-sendo; e, batendo o Ano 2000 à porta, os filmes cntinuam socialmente sentimentais... todavia, perdendo a carga do realismo ganharam uma carga psico-surreal (lembremo-nos de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, de Almodóvar), por um lado, e uma carga animalesca porque anti-ética (como em The Devil’s Advocate, de Taylor Hackford, com magistral interpretação de Al Pacino) que, apesar de tudo, funciona como alerta para a própria Humanidade!

 

E não sendo propriamente uma clonagem de sinais técnicos e sociais e culturais, o cruzamento da Linguagem vária que ativa e fere o nosso dia a dia está na Cinematografia por um diálogo artístico que, sabe-se, pode carrear ícones ideológicos, sejam políticos ou religiosos, sem que tal lhe possa machucar a produção cultural livre e democrática... pois, só mesmo a Cinematografia para mostrar(-nos) o drama humano que somos em meio a uma semiótica que, de circunstância, só tem o ranço do formalismo!

 

Em finais dos Anos 70, em Portugal, escrevi O Cinéfilo & Os Tempos, opúsculo que no início dos Anos 80 a polícia achou "por bem" destruir após uma visita a casa de uma amiga minha produtora gráfica - eh, coisas da Linguagem... Estava imbuido pela poesia d’imagem - aquela Imagem que é representação plástica de um objeto ou de um ser. Embora de uma Fotografia se possa dizer "é algo do realismo", do Fotograma Cinematográfico pode-se dizer "é do realismo como é do ilusório", já que o sentido estático de uma Foto revela um fato e o movimento num Filme revela as circunstâncias do mesmo fato e amplia-o pelos caminhos ficcionais levando à interação câmara-tela-espectador. Em 1999, ao escrever este texto-base para a palestra O Cinema E Os Nossos Sinais, no âmbito das ações intelectuais do Grupo Granja (em Cotia/SP, Brasil), recebo as notícias da morte do japonês Kurosawa e de um novo filme do português Manoel de Oliveira: dois gigantes do drama-em-imagem-artística. A Cinematografia é como estas notícias: vive(mos) de más e de boas novas. Linguagens que transportam-nos para a essência da vivificação do Todo por um Eu talvez (...talvez hoje mais do que ontem) perto do Sujeito-comunitário e empurrado contraditoriamente pela Globalização que o Capital(ismo) financeiro executa. Acho-me, escrevendo sobre Cinematografia, parte dos sinais que em mim misturam-se na compreensão dos mundos interior e exterior... porque, como (nos) ensina a História Cinematográfica, por mais que o Ser Humano tenda a refugiar-se em sinais que lhe são, afinal, adversos socialmente, ele sempre tem a larga visão que lhe permite ir ao encontro do(s) s(Eu)s!

 

Quando assistimos a um documentário sabemos que esse trabalho foi rodado como um poema: existe um diálogo inserido num tempo mínimo que o fará obra de arte, se trabalhado como obra artística, ou será nada, se a inspiração está somente de acordo com o algo mercantil. Como no Cinema, todos os dias realizamos um documentário, ou vários, o que precisamos, como observadores cinéfilos, é conhecer a Linguagem geral da Vida (e, neste caso particular, da sua interação com a Cinematografia) renovando-a com os sinais que nos enchem a Alma de experiência feita!

 

Fugir ao estereotipo doentio da leitura ocidental é ganhar as asas sobre uma paisagem vivificadora que pode ser tristemente cómica (como sabemos pelas obras de Chaplin e de Mário Moreno), triste (comos as de Eisenstein) ou surrealisticamente divertida (como a de Almodóvar): nos três casos, a Ética e o Social impõem (um)a Verdade das "coisas" que nos rodeiam e abordam.

 

A paisagem ocidental que enquadra o nosso olhar - e é, na verdade, o pré-conceito estimulado que (nos) sinaliza a Existência... como que num grosseiro desmonte da amplidão humana que, sempre e ingenuamente, busca no Belo e na Cidadania as razões da vivência - atua em nós como prevenção policialesca no jeito do alerta de Orwell, ou como Valsa ritmando individualisticamente os comportamentos. A este Poder estabelecido - recordo as lições do professor e teólogo português Manuel Reis, particularmente o seu livro As Máscaras De Deus..., contrapõe-se o Eu que, por ex., a Cinematografia expõe(-nos) como o Belo realizando a vivência própria em Sociadade: por isso, a Cinematografia é um instrumentio artístico que (nos) proporciona a especulação necessária à re-construção filosófica permanente no cruzamento dos sinais contemporâneos, não valsando mas sugerindo a vera e humanizante dança de todos por uma harmonia saudável.

 

E se por um lado a arte cinéfila leva-nos à captura do tempo manipulando-o, por outro, permite-nos criar nele espaços sob a idéia da reforma constante pela Arte vera e profunda.

 

 

Como dizia Truffaut, num encontro de cineclubistas, nos Anos 70, o que é preciso é saber gizar a idéia-de-arte e produzi-la culturalmente no âmbito de uma determinada sociedade; no que emendei, idéia-de-arte que tem de ser tão vivificante quando a Linguagem de uma lágrima que reflete a Morte ou a Vida!

 

Termino esta intervenção lembrando que entre a Fotografia e o Cinema existem fronteiras linguísticas, muitas delas pré-concebidas pelo aspecto técnico de ambas as artes enquanto instrumentos-veículos; mas, no caso da Cinematografia, existe uma sinalética que é inerente ao próprio Ser Humano pela paixão do ritmo que o movimento em si desencadeia. Especificamente, é no modelo Documentário (ou outros tipos de curtas) que mais encontramos estes sinais que nos identificam social e poeticamente com a arte cinéfila. E até, como já mencionei, o Cinema cibernético que nos abre as portas do 3° Milênio, joga toda uma linguística diversa que tem muito a ver com a montagem utilizada no Documentário. Ora, aceitar que a câmara pode ser tida como o olho humano em toda a sua complexidade psico-filosófica é aceitar, de fato, a possibilidade de construirmos um olhar livre e democrático através de uma Arte como a Cinematografia, apesar dos dogmas ocidentais... E isto porque a aventura cinematográfica é a aventura humana artisticamente assumida - assim, quando falo de Cinema falo dos Sinais que represento e que me rodeiam: o Cinema, como eu, é um Todo...

 

 

 

Grupo Granja

Cotia/SP, Brasil - 1999