500 Anos de Brasil
e d'Os Decobrimentos

Textos de João Barcellos

A CELEBRAÇÃO DE PORTUGAL

Camões - Poeta Do Tempo Lusitano

 

1

 

 

O virar da ampulheta, naquele momento, e depois de ter conhecido o precioso rendado que comemora (01) os feitos e os efeitos d'Aljubarrota, levou o jovem a pensar que o último quarto da noite (02) o faria

 

 

viver a Humanidade entre os heróis

 

que tanto lhe incendiaram a Alma entre as páginas e páginas da biblioteca (03) que Frei Bento (04) lhe dera a conhecer.

 

Ele tinha n'Alma o odor da terra (05) dos poetas, não era preciso a chuva para que o jovem vibrasse de lirismo ante o esplendor dos versos antigos - e no entanto, queria mais do que isso: aquela bela arquitetura normando-gótica do mosteiro avivara-lhe no Espírito a peculariedade guerreira dos celtiberos preferindo esta (embora não lhe repugnasse a outra) à típica quitude conservadora e poética dos galegos. Tal aliança intelectual, ou poético-guerreira, fê-lo surgir nos altos cenários lisboetas d'então como algo novo e, ao mesmo tempo, como um perigo para os vates acomodados em torno das delícias palacianas.

 

E como a Poesia não se faz - ela é um dom que a Espiritualidade dos bafejados apenas interpreta numa simbiose de criatividades orais e escritas, tratando das coisas do umbigo próprio e do alheio, e do Tempo, como ele muito bem entendeu... -, deleitou-se com as belezas de uma Lisboa que conhecia próspera, rica e poderosa; porém, entre os encantos naturais e os das naturalmente belas damas logo conheceu, também, os obstáculos do ódio e do ciúme, que o levaram a ver e a ouvir o Tejo atrás das grades das masmorras imperiais.

 

Que boa era vida de Lisboa..., escreveram alguns cronistas: essa que ele conheceu não como simples poeta-da-corte, mas como Poeta já vivenciando as realidades que a Seista Idade (06) quintocentenária impunha à Escrita e em que se esboçava um tipo de profissionalismo: o Escritor.

 

 

Se outros, antes dele, já andavam por essa estrada, ele soube empreender uma viagem na Literatura que desassossegou muito vagabundo dito artista-de-letras-para-adocicar-as-damas, mas, mesmo assim, ainda o triste artista-vivendo-d'esmola. Com ele, um Espírito imbuído da exuberância de uma Lisboa moderna e de portas abertas, como que renasce um mecenato que atribui às Letras uma importância que ía além do simples poetar sob o sorriso dos amantes na corte ociosa, uma importância que igualava as Letras às Armas. Com esse seu jeito de impôr-se para levar avante o seu querer

 

 

viver a Humanidade entre os heróis

 

o jovem vate tornou-se um intelectual requisitado a ponto de ser apresentado a El-Rei D. Sebastião

 

 

Pera servir-vos, braço às armas feito

 

como se ali estivesse o intérprete natural da Vontade portuguesa para lembrar ao menino que era rei que a História tinha de prosseguir, porque a Nação já o era! Esta atitude poética e guerreira foi o assumir de uma Vontade própria alcançada naquele quarto da noite, que da Alva o era. Por outro lado,

 

o peito de um alguém que vivera numa biblioteca as epopéias

e as lendas ditas de uma Antiguidade que lhe era próxima

 

e, também, de um alguém tocado pela volátil seta do Cupido e que, assim, registrava em Si mesmo como

 

a Poesia era coisa e Ciência de poucos eleitos!

 

Aí, o Espírito do poeta encheu-de de uma Energia que espelhava não só o Todo português d'então como a fragrância terna d'Amor - quiçã, entre isso, também a Sorte (07) de testemunhar n'Além-Mar o seu ego belicista. Nele cresceu mais ainda aquele querer

 

 

viver a Humanidade entre os heróis.

 

 

 

2

 

 

Com pouco mais de vinte anos de idade instruíra-se com um Saber vário que a sua geração nem procurava. A sua apurada memória, aliada a uma inteligência sempre trabalhada para o colocar no cerne de um cenáculo poético-social tão desejado, deixou-o à frente daqueles que, com a sua idade, eram já ociosos matulões palacianos ou monges, marujos, cavaleiros de salteo, bandeirantes..., todos querendo ser o que jamais seriam!

 

Não queria para si os olhos galegos (herdados da família) que apenas viam o Tempo, ele queia o Espaço d'Aventura contra a estupidez ociosa da Ignorância que o rodeava: era

 

 

o ousar Ser

 

com e apesar dos outros para descobrir no mundo os mundos que um Infante, em Sagres, ouvira cantar nas ondas quebradas do Mar.

 

Para ele, não adiantaria fazer o Caminho de Santiago, não lhe interessava viver o Estar como peregrino do que sabia ser o óbvio mas, sim, que os seus olhos vissem no Mar de Longo, ou nas Terras d'África ou d'Oriente, com quantas ondas ou quantos grãos d'areia se faziam os Heróis que sustentavam a Coroa e o Império dilatando a Fé...

 

De tertúlia em tertúlia, sempre sob um mecenato fidalgo que o socorria, de deslumbramento em deslumbramento, ele caíu também em borrascas, umas ciladas outras não, até que o desterraram para a lezíria ribatejana e, depois, em degrêdo, a cumprir serviço militar como soldado na praça de Ceuta.

 

Dir-se-ía que o ainda jovem poeta estava a pagar bem caro as suas leituras de Coimbra, pois cumpria uma Sorte que já vislumbrara antes; só que a tal epopéia particular ele mesclava, pouca a pouco, a grandiosidade dos feitos lusíadas nos mares nunca antes navegados, e antes os dos cavaleiros que na antiga Lusitânia ergueram, a golpes d'azeite fervido, a cavalgadas intermináveis e notáveis espadeiradas, o reino de Portugal. Do simples, sem deixar de ser altivo

 

o suficiente, e jovem poeta que deslumbrara já o rei mas deixára atrás de si uma corte d'imbecis invejosos e vingativos, nascia

 

 

 

Luis Vaz de Camões

 

o poeta do Tempo lusitano... quando a Ilusão ainda era chama que alumiava a Nação e a Poesia disso era canção!, aquele que além de ser de Portugal foi também chamado de

 

 

principe de los poetas de españa

 

em uma edição madrilena (08) de seus escritos épicos, em 1639, sob os auspícios de Al-Rey N. Señor Felipe Quarto, e depois que as guitarras haviam silenciado nas Terras d'África sob uma bandeira muçulmana (09).

 

 

 

3

 

 

A aferição do gênio intelectual não precisa ser feita na epopéia com que ele celebraria Portugal, basta saber como ele se apresentou publicamente na audiência real concedida por aquele que seria insuflado de ventos d'Ilusão ao ouvi-lo cantar

 

 

Nem me falta na vida honesto estudo

Com longa experiência misturado,

Nem engenho, que aqui vereis presente,

Cousas que juntas se acham raramente.

 

numa lírica de tal desassombro social que um monarca mais vivido poderia fazê-lo padecer por tanta altivez. A astúcia do poeta poderá ter a ver com o seu aprendizado nas boêmias de Coimbra e de Lisboa, mas foi mais o efeito clamoroso de uma causa que lhe atacava o Espírito, lhe formigava o Corpo, uma foz "onde a turbulência da vida que sonha / sem mesmo sentir a sua voz" (10)...

 

A apetência do poeta em servir-se da História e n'Ela entrar fê-lo encarar D. Sebastião como se fosse, logo ele, filho de fidalgos pobres!, ali o Oráculo urgente de onde o menino que era rei poderia retirar os ensinamentos para a continuação da História - essa, que ao poeta obsidiava literariamente e, no mesmo gesto altivo, deixava no ar a doce sedução das "Causas que juntas se acham raramente". Para um monarca sem quaisquer tipos de vivência social e política, portanto, sem Autoridade cívica e fora das realidades do Estado, o discurso poético e mundano de Camões deve ter soado como um cântico d'exaltação, o que jamais alguém fizera nos salões da Corte com tanta autoridade e profecia, apesar da presença solene e letrada de homens como Sá de Miranda. Sem pressentir a Voz que fluía, o Sonho que sustentava o poeta influía nos outros os ares de uma jactância que não combinava com a dos conselheiros reais, ou a dos poetinhas de rima adornável, pois, aquela jactância tinha no gênio intelectual o Espaço fértil de uma autodefesa que colocou Camões como a pedra preciosa que, burilada aos poucos, ía refletindo os diálogos sociais e políticos do Império. Mas isso não fez com que as portas palacianas se abrissem tão amiúde para o poeta...

 

Não é de estranhar que esse engenho o distanciasse de todos os da sua geração - até por que, se algum salteo ele queria levar avante esse só poderia ser d'Amor, e só d'Amor. Longe dele estava a intenção de fazer o menino que era rei cair em seu laço, escravizá-lo por uma musicalidade poética superior, mas o monarca, insuflado (e também iludido e traído), quis ser o imperador de um Império que desejava maior e maior - por isso, deve ter-se lembrado do engenho cantado por aquele poeta na apresentação que lhe fizera. Tudo o vento levava, menos a Palavra gravada n'Alma de um alguém hiante e que era Rei e, em prol do engenho de o ser, quis prová-lo mandando armar uma bandeira que foi a Alcácer-Quibir enfrentar os Infiéis, que isto de ser Rei e ter Engenho são, eram para ele,

 

 

Cousas que juntas se acham raramente,

 

como a História no-lo demonstra na derrota da bandeira e no choro das mil e tantas guitarras que o pó d'África sepultou...

 

Eis como o gênio intelectual do poeta pode ser buscado e trabalhado dentro daquilo que não é a sua Obra maior. Aliás, se n'Os Lusíadas (11)

 

a celebração de Portugal

 

assenta arraiais poéticos numa Escrita que mistura a essência cavaleiresca com a caraveleira e bebe nos Mitos uma luz que não é estranha ao umbigo camoniano ilustrado na biblioteca e na vivência coimbrã, é porque ele não viveu o apogéu da jactância imoral que alimentou (por falta d'Engenho e d'Inteligência e mais por falta de Maturidade) o Sonho de um menino rei que quis ser maior que a História; se ele tivesse, ele - Luis Vaz de Camões, vivido essa página negra, talvez Os Lusíadas fosse impregnado, no seu bojo, entre o Todo que é a Obra, a dinâmica da falência das instituições que faziam confundir Rei com Deus, e vice-versa: aí, o poeta dar-nos-ía a epopéia de uma Política diplomática e palaciana que, ociosa entre riquezas fartas colhidas na Escravidão, esqueceu de olhar para o Futuro, deixando-nos nús apesar do golpe astuto de Tordesilhas... Aquele verso cantado diante do menino que era rei e dizendo-nos (ainda hoje, quinhentos anos depois) das

 

 

Cousas que juntas se acham raramente

 

foi uma profecia que ele, regressado da praça de Ceuta sem um olho, pressentíu: era algo que estava para acontecer com ele e com a Pátria que tanto amava, pois

 

 

A piedade humana me faltava,

A gente amiga já contraria via,

--------------------------------------

E faltava-me em fim o tempo e o mundo

 

assim cantava ele (em 1550, e quando a Insulla Brazil não era mais insulla mas um vasto território) ao partir para Goa depois de ter sido encarcerado outra vez por uma estúpida e vã arruaça.

 

  

Aos poucos, conhecendo a Humanidade tal como ela se lhe dispunha, o poeta sentia cumprir-se a Sorte - a sua, que a da Pátria ía definhando. Regressou ao Tejo nos Anos 60 daquele Quinhentos e com o manuscrito d'Os Lusíadas a salvo, depois de uma epopéia em que ele vestíu finalmente o manto d'Herói e que o levou até a participar de um outro salteo (12) nas Terras d'Índia. Tanto assim foi que El-Rei D. Sebastião mandou-lhe entregar um subsídio trienal em honra da edição d'Os Lusíadas, embora lhe tenha recusado audiência... E então, a Pátria, com o menino que era rei, mergulharia por inteiro no desastre bélico d'Alcácer-Quibir. Ao poeta restou assistir. A profecia, ditada pelo seu gênio intelectual e o seu complexo ver nas pessoas a reação à sedução da Palavra, estava ali...

 

a desgraça da Pátria amada foi a Sorte que lhe coube, também, apesar da Glória de ter visto o seu livro traçar novos rumos para as Letras portuguesas!

 

 

 

 

4

 

A práxis intelectual do poeta da gesta que tão ternamente celebra Portugal pode ser tomada como uma autêntica

 

bandeira cultural

 

ao fixar na nova Literatura tudo isso e, também, a dramaturgia de um Tempo flagrado na psicologia e na ciência nascentes; e lembro, aqui, a ode que Camões compôs para servir de apresentação a "Diálogo Dos Simples e Drogas", livro do pesquisador e amigo Garcia da Horta, ou a sua referência ao aparelho da representação dos movimentos celestes de Leonello, para sabermos da sua ligação às novidades da Química e da Astrologia.

 

Luis de Camões, lírico, épico e dramaturgo, desenvolveu em sua práxis intelectual uma ciranda de criações que o colocaram a par de Virgílio, Ariosto e Homero, entre outros, sendo no entanto um caso particularíssimo... por fixar, enquanto Escritor, os pilares de uma Pátria novíssima e pequena mas que alcançou na Distância marítima um Império fantástico. A importância do autor d'Os Lusíadas nas correntes literárias clássicas foi tal que passou a ser, paralelamente, a referência da força psicológica do Ser português nos quatro cantos do mundo - isto é: a sua práxis intelectual foi a

 

bandeira cultural

 

que não precisando de golpes de salteo fez fluir, em quietude, o universalismo de um povo único ao cantar-lhe o espírito peregrino.

 

Podemos observar esta questão por outro vector: quando os castelhanos, com Felipe I, assumiram a Coroa portuguesa, tornaram-se a Nação mais poderosa do mundo d'então, e o último da Dinastia Felipina - Felipe IV d'Espanha e III de Portugal, mandou publicar no Ano 36 do Seiscentos uma edição especial d'Os Lusíadas... esperavam, com isso, comprar a Intelectualidade lusa colocando-a sob tutela de um vil mecenato político; mas, esse Felipe fez imprimir na capa um "elogio" a Camões: principe de los poetas de España. E então, virou-se o feitiço contra o feiticeiro: a Nacionalidade portuguesa não o era somente pela Coroa, também, e principalmente, por uma Cultura já bem expressa mundo fora pela odisséia caraveleira. Os usurpadores castelhanos, na sua ânsia de limparem o velho Caso d'Aljubarrota da História, foram longe... E o Povo e a Burguesia, como um todo, entenderam aquela edição madrilena d'Os Lusíadas como a afronta maior feita à Alma magoada de uma Nação ainda em farrapos... Começava aí a resistência do Ser português contra os usurpadores. Também, um novo Tempo que, quer se queira ou não queira, estava embasado no engenho de Camões e na sua sábia

 

bandeira cultural!

 

 

5

 

O relacionamento do poeta entre o seus e a magnífica e esférica e bela Gaia, o "palco da maravilha e da miséria da vida" (na interpretação de Hesíodo - poeta grego, Séc. 8 aC), teve momentos de sublime alegria quando reconheceu no Amor o caminho mais curto para a Felicidade e a desesperante loucura da Saudade, ou, quando alegando seus conhecimentos sore a Modernidade científica - ele, que foi conhecer de perto o Cruzeiro do Sul -, fala-nos do Globo que

 

 

...que se ergue ou se abaxa e hum mesmo rosto

Por toda a parte tem, e em toda a parte

Começa e acaba

 

levando aos ainda incrédulos a novidade certa de que a Gaia não era só e que até tinha movimentos próprios, apesar da Igreja!

 

Essa vivência d'embarcadiço e militar iniciou-e no ambiente que era da Maravilha e era da Miséria, como deveria saber d'Hesíodo, e que le mesmo já havia provado em África, acabando por enxergar de novo quando foi combater os turcos no cabo de Guardafu impedir-lhes a galopante mercadância. Ali ele sentíu a vera poesia d'Hesíodo. Ali ele percebeu o quanto a Gaia, na já adiantada Seista Idade e percorrida de pólo a pólo depois de Magalhães e El Cano, não passava de uma paisagem onde tudo poderia acontecer a propósito das filosofias engajadas ao jeito vário do ser humano. E então, montando guarda para que a Fé do cristão não sofresse com a mercadância do Infiel, e com ele não desaguasse o Império, também este feito da vil mercadância, pôde ver definitivamente como

 

 

os (...) pensamentos, (...) são meios

Para enganar a própria natureza

 

cantando isso numa das suas poesias de mais alto valor psicológico e literário (a Canção X), mas sem conseguir, ainda assim, atingir o brilho social do cantar bocagiano (13) sobre o mesmo tema - quiçã, porque em Camões o classicismo levou-o a entender, como de resto encontramos nos Portugueses de sempre!, um relacionamento superiormente humano sobre e com a Gaia, e sem pensar jamais que a Humanidade o é em função das naturezas que esse chão lhe oferece, daí, a poesia e a visão d'Hesíodo, como a de Bocage, considerar a Vida sobre um palco natural que deve ser respeitado. Para o vivido Camões importou somente o risco da Maravilha sem se dar conta da Miséria imperial da Nação dilatada entre estragos sociais que irrompiam, também, à sua volta, e, com eles, a destruição da Gaia enquanto eco-sistema. E foram os aspectos sociais

 

 

 

aqueles que ele sentíu no Espírito e o levaram a considerar a História de Portugal não como um simples quadro épico, mas como um Todo sentimental, principalmente quando no cabo Guardafu deu-se conta da importância da Vida socialmente vivida contra a podridão bélica em que estava embasado e embarcado, lembrando que

 

 

As estrelas e o fado sempre fero,

Com meu perpetuo damno se recreiam;

Mostrando-se potentes e indignados

Contra um corpo terreno,

Bicho da terra vil e tão pequeno

 

como se a Gaia tivesse culpa de o ser e estar e tivesse de suportar-lhe a indignação algo tardia que viera com a Saudade pátria e um romance lá deixado. À incompreensão do vate por tudo quanto passara sobrevivera um instinto que não desenvolvera: o da sobrevivência animal. Ao lírico que vivera uma Vida incontrolada por paixões amorosas e feitos bélicos, restava, então, a recordação das leituras de Coimbra que o tio Frei Bento lhe proporcionara e, com isso, a partir dessa recordação, a sua Escrita épica ganha uma dimensão psicológica que iria enquadrar a gesta lusitana intimamente vivenciada numa dramaturgia imortal e na qual põe o Império exatamente como é: um rol de peças mercantis fabulosamente trabalhado entre povos outros na Distância para crédito do ibérico umbigo e dos bispos do não menos mercantil Vaticano que desse crédito levavam uma boa parte em nome da Cruz. Foi talvez isto que o impedíu de mostrar n'Os Lusíadas mitos e gentes e deuses sem grandes dimensões psicológicas, como se pode ler e sentir em

 

 

Inda outra muita terra se te esconde,

Até que venha o tempo de mostrar-se;

Mas não deixes no mar as ilhas onde

A Natureza quis mais afamar-se.

Esta, meia escondida, que responde

De longe é China, d'onde vem buscar-se,

He Japão, onde nasce a prata fina,

Que ilustrada será co a Lei divina

 

Olha cá pelos mares do Oriente

As infinitas ilhas espalhadas:

-------------------------------------------------

As árvores verás de cravo ardente

Co sangue Português inda compradas.

Aqui ha as aureas aves que não decem

Nunca a terra e só mortas aparecem.

 

- e, nessa dimensão épica estava aquele Camões que, definitivamente, via na Gaia o chão e o paraíso possíveis, e começava a

 

viver a Humanidade entre os Heróis

 

dos quais, ele era já parte integrante. Também, o triunfo da maturidade enchendo um peito de poeta e soldado, aquele para quem

 

 

o ousar Ser

 

triunfava na infinita e vera Distância portuguesa alcançada com o mesmo brio com que a Nação fôra fundada.

 

A lição d'Hesíodo pairou no Pensamento camoniano como uma sentença determinada pela própria Vida!

 

 

6

 

A amostragem da Nação que se diz ser Portugal d'Além-Mar, através da Cultura lusófona, já tinha um curriculum de leituras nos Livros de Viagens (14) que, certo modo, coloriam a imagética da Nobreza e do Clero ávidos de mais e maior Poder

 

(aqui, o Povo e grande parte da Burguesia nascente, não passavam de um detalhe que não poderia subir à luxuriosidade da Coroa e sua mui ilustre Fidalguia)

 

- pois, faltava então um instrumento literário capaz de galvanizar o Todo monárquico; um instrumento ao mesmo tempo Obra portuguesa e européia (como convinha à Linhagem que unia as Coroas).

 

Compreendendo tal necessidade, e sujeitando-se a um regresso às noções elementares da Escrita Cavaleiresca, Camões adotou em sua épica um conjunto de criações mitológicas balizadas n'Antiguidade e desdobrando, aí, o Ser português-fidalgo (fundamentalmente, eis aqui o quê da falta de personalidade em muitas dessas criações!...) para fazer

 

 

a celebração de Portugal

 

que, muitos séculos depois, seria re-elaborada magistralmente, porque espiritual e psicologicamente tratada, por Fernando Pessoa (15), admitindo este

 

 

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

-----------------------------------------

Quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

 

(16)

 

reintegrando nessa novíssima celebração o Todo português.

 

Por que isto? Porque a épica d'Os Lusíadas esteve para o luso Império como a borrasca de taverna para o Povo suado e sangrado, sendo que este não existíu no exercício épico-poético de Camões!

 

E se nessa épica majestosa não houve, ou não coube, o Tempo popular, Tempo e Espírito que o poeta be conhecia como boêmio e soldado de entre as ruas e cais e tavernas do mundo descoberto!, ficou de um modo geral o Espírito universalista e aventureiro do Ser-português que, entre suores e sangues fez da Vida de peonagem e de marinhagem

 

 

 

a celebração de Portugal

 

mais farta e mais real que uma Pátria pode(ria) almejar em sua História. E no mais (como em tudo!), foi o Povo cantado pela Escrita Pessoana que foi ao cais, que fez navegar as caravelas, que foi aos mundos da Terra, que fez a odisséia na Insulla Brazil - aquel odisséia que Camões equeceu por ser, à época, coisa d'Estado nas vozes miúdas, e de pouca monta para a Coroa à qual só Ouro e Diamantes e Especiarias já sabidas mereciam atenção; foi o Povo (e basta lembrar Aljubarrota e a Restauração, esta, apenas 60 anos depois d'Alcácer-Quibir e sob domínio castelhano) que sempre soube resistir às adversidades para não deixar cair o Ser-português...

 

A lírica e a épica de Fernando Pessoa, assim como, antes dele, o coreto popular e desenraizado de Bocage, derrubaram tal pre-conceito de Camões... que não era apenas social mas também histório, fundamentalmente histórico e não ideológico! Ora, n'Os Lusíadas não se vislumbram nem as resistências populares que seguraram Portugal nem a saga marujo-bandeirante na Insulla Brazil.

 

O que estava em causa (e isso era peculiar na época e da Cultura feudalista, ainda) era a ideológica lealdade à Coroa, daí que entre aos livros ilustrativos do Portugal d'Além-Mar viria a juntar-se uma Obra literariamente majestosa que, por um lado, seria o historial do mercantilismo lusitano e, por outro, o tributo das Letras e da Erudição à Casa Real. É injusto afirmar que essa Obra esqueceu deliberadamente o Povo. Nada seria mais falso! É que à época

 

 

falar d'El-Rei era falar de Deus e era falar do Povo

 

mas Camões pecou: não teve sensibilidade para retribuir ao Povo as glórias de Portugal, essa nação d'alma grande (17) que espelhava, afinal, o Querer e a Vontade populares. Esta sombra que pairou, e paira, sobre Os Lusíadas, é um sombra que é, também, um detalhe de observação que não ofusca de maneira alguma a nação d'alma grande que Camões quis e soube captar com erudição, nem tampouco prejudica a Obra que é produto de um classicismo acabado e inovador - direi mesmo: à imagem daquele fabuloso rendado normando-gótio que tanto impressionara o poeta...

 

Quando, naquele último quarto da noite, entre Coimbra e Lisboa, o jovem Luis Vaz de Camões sentíu-se atraído para o

 

viver a Humanidade entre os Heróis

 

não esperava que teria de passar e viver pelo Tempo popular e de lhe compartilhar o Espaço (na masmorra, na taverna, na alegria e no ódio, na doença e na miséria, no desterro, na glória da peonagem e da marinhagem)... Mais tarde, ao dar-se conta dessa outra realidade chamada Povo, já Os Lusíadas era livro publicado!, Camões cantou o umbigo dilacerado numa lírica romântica em que os vestígios da existência de um Povo se fixeram sentir, como um reflexo tardio na mente do poeta-herói. O seu sofrimento, no isolado cabo Guardafu e nos salteos

 

 

 

 

contra o Infiel turco, não era mais que

 

o sofrimento de um Povo ousado mas esquecido na Distância alcançada

 

(o que acontece até hoje no que à Diáspora lusa se refere)! Não poderia ele ser indiferente àqueles com quem partilhou o universal ser-Portugal, porque ninguém se faz Portugal no acaso, e sim pela Saudade própria de estar Portugal em qualquer lugar, porque

 

 

.. se é partida e fuga

(...) sempre deixamos alguém à espera

 

(18)

 

fazendo-se sentir o fero sentimento da Saudade. E aí, a heroicidade do poeta era já irmã gêmea da heroicidade do poeta... Também, porque

 

Os cais tocados pela lusa ousadia

são Espaço e são Tempo de um futuro vivido: o Espírito

d'Eternidade que alia

o Todo exterior ao dizer íntimo do querer vivido!

 

(como declarei em palestra sobre o assunto). E interessa explicar, se tal é preciso..., que a repugnância camoniana em aceitar o Povo como chave da Independência e da Expansão lusas não impedíu que a Burguesia e o próprio Povo tomassem Camões como poeta seu, e que uma indignação geral se tenha apoderado de todos quando os usurpadores castelhanos fpublicaram aquele "principe de los poetas de España" - sim, que no caso estava em jogo o Ser-português!

E estava provado, assim, que uma Obra cultural, como a camoniana, poderia transformar-se na vitrine de uma Nação por inteiro e a partir da matriz, mesmo que tendo a Expansão imperial como enredo principal.

 

E então, já não era um livro de paisagens do Portugal d'Além-Mar, ou das Cruzadas, ou do Mercantilismo: a epopéia d'Os Lusíadas passou a ser a Embaixada natural da Língua e da Nação portuguesa, e até a República viria a adotar a Obra como sua...

 

 

 

7

 

Esta leitura sobre Os Lusíadas e o gênio intelectual camoniano levanta algumas interrogações, não ao nível da

 

bandeira cultural

 

que tão criativamente o poeta levou adiante, mas no que ao interesse social e histórico diz respeito.

 

Luis Vaz de Camões

 

tem sido lido e interpretado à luz de um interesse crítico que não lhe levanta o jeito d'Estar na Vida, sendo que uma Obra literária é indissociável do Autor e dos seus passos no dia a dia -, por isso, Fernando Pessoa sentíu-se, depois de o ler e interpretar, na obrigação pátria de dar aos portugueses aquilo que de direito lhes pertence, como Povo e como História!

 

E nada mais salutar na Literatura que o Espírito crítico construtivo para dimensionar aquilo que fomos e somos, no individual e no coletivo.

 

A Escrita épica e lírica d'Hoje continua a d'Ontem com o mesmo Espírito lusíada, mas não estamos mais sob a tutela de uma Política absoleta e ociosa, o que, também (entenda-se...), não nos faz mais portugueses que os d'Ontem! E no entanto, os portugueses que vivem Portugal na Distância continuam tão isolados quanto a solidão madrasta que Camões viveu!

 

 

 

 

8

 

Tornando ao esquecimento camoniano em torno da questão-Brasil, também o luso-flamengo Pero de Magalhães Gândavo (19), ao que se sabe, amigo do poeta, e que conheceu a Insulla Brazil e suas gentes, não foi além de uma Escrita sobre o mercantilismo e a geografia - aliás, os nativos são por ele arrolados como mero produto de venda e troca. Este exemplo da (absurda e estúpida) superioridade do Letrado e do Fidalgo (e este, na maioria não era Letrado!) - superioridade em relação à mão-d'obra, dá-nos o traço forte de uma época em que tudo era tido como e para a Coroa, visão cavaleiresca e mística que apenas produzíu miséria sob a benção do Papado quando o relacionamos com o Humanismo que irradiaria por toda a Europa, e que haveria de levar as gentes e os emigrantes na Insulla Brazil, dita já Sancta Cruz e Brasil, a tratarem-se como Brasileiros sob o ideal da Independência e abrindo outros caminhos. Entretanto, como nos informa Alfredo Bosi (20), ainda por nesse Tempo de fascínio pela Coroa e sua ociosidade à custa do Povo, o emigrante e vereador (na Câmara da Bahia) Gabriel Soares de Sousa (1540-1591) escreveu um "Tratado Descritivo do Brasil" no qual o Povo assumia finalmente uma dimensão cultural e religiosa. Era o início de algo que iria mudar tudo e até a Literatura. E então, o referido esquecimento de Camões teve mesmo a ver com as peripécias políticas e religiosas de Tordesilhas e com o "achamento" da terra do pau-brasil (que as Coroas lusa e castelhana já conheciam muito bem) - mas, naquele instante, o que interessava a Portugal era a Índia e não outra coisa. Era o bem já conhecido que movia os interesses da Coroa portuguesa sob os investimentos financeiros dos judeus de Antuérpia, que também se utilizaram do pavilhão da Ordem de Cristo.

 

Ao tomar a vida sócio-militar do Gama como peça fundamental do enredo da sua Escrita épica, Camões não poderia, formalmente, encostar aí a questão cabralina, mesmo tendo conhecimento das cartas de Caminha e do Mestre João sobre o assunto. Era um caso diplomático de raiz profundamente econômica! N'Os Lusíadas não foi achado espaço para a questão cabralina, ou brasileira, essa odisséia lusa na insulla distante mas localizada já em mapas do quatrocentistas. Foi um erro cultural, humano e político, que pôs Os Lusíadas não como peça do Portugal d'Além-Mar mas como Obra de importância relativa no estudo da Língua e da Cultura portuguesa na Insulla que viria ser a Nação brasileira! Era já o estertôr do Império luso. E se Camões viveu a primeira fase desse declínio, soube ainda reconhcer a importância mercantil e paisagística de uma Sancta Cruz que Gândavo lhe dera a observar e a que ele dedicaria uns parcos versos de apreentação formal.

 

As razões que levaram ao esquecimento da questão brasileira estão, e podem ser observadas em síntese, na estética e na práxis intelectual que fez de Camões um clássico inovador - no entanto, e infelizmente, sem a grandeza do Humanismo que só tardiamente reconheceria e nos daria em sua Escrita lírica. Dilacerar o Infiel turco e dilatar a Fé cristã era o propósito

 

ideológico da época, e todos contribuíam para esse fim. Ora, estava a Insulla Brazil muito longe de tal contenda religiosa-mercantil, e sendo o povoréu arrolado nas entrelinhas da Epopéia geral, nada mais poderia acontecer que o esquecimento...

 

 

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E isto dá-me força para, ao falar da celebração de Portugal (e sob a êgide da Casa Real, respeitando aqui o Tempo histórico), considerar e fazer justiça a

 

 

Camões - o poeta do Tempo lusitano

 

pois, ninguém mais do que ele (porque vivenciou a época como soldado e como intelectual) soube interpretar a saga lusíada com um joelho no chão pátrio e o olhar no rei, que ali era Deus e era Povo!

 

 

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A astúcia do Escritor, vivendo a essência quinhentista da Seista Idade e embrenhado que estava numa Filosofia religiosa ainda atrofiadora do Indivíduo, fê-lo aproveitar as oportunidades e as amizades (como as dos Condes de Linhares, que o levaram à Corte) para tornar-se

 

um nome falado, embora mais odiado que amado!

 

E enquanto Camões exaltava em D. Sebastião a febre imperial e cavaleiresca, outros, como Pedro da Costa Perestrelo (também um épico e autor de uma "Carta a D. Sebastião"), aconselhavam-no a não entrar em aventuras precipitadas em terras d'Infiéis.

 

Portanto, não se pense que o ato de ajoelhar ante o monarca impedia um intelectual de o criticar construtivamente, de o fazer ver e sentir a Razão.

 

Mas poeta Camões vivia outra dimensão, menos realista: a poesia d'Antiguidade, os feitos e as visões dos velhos que haviam fundado Portugal e alargado para lá da Terra conquistada os seus limites, incendiaram a Vontade camoniana.

 

Que margens poderiam conter esse rio que encaminhava-se para a maresia épica? Nada. Nada iria corromper esse posicionamento e a

 

bandeira cultural

 

que o jovem tinha traçado para si mesmo naquele Alvor que lhe emergia de uma Modôrra onde o descanso não fôra!

 

A atitude de Camões visava viver uma Humanidade que só existia no espectro heróico-belicista, e o seu querer

 

 

viver a Humanidade entre os Heróis

 

condenou-o desde logo a uma Existência precária, turbulenta, à qual só resistíu mercê dessa astúcia e desse gênio intelectual muito superior ao daqueles que o rodeavam, amigos e inimigos.

 

Sem dúvida, a Ilusão fez o Escritor épico, aquele que mexeu em tudo e todos para sustentar-se entre as fantasias que eram, afinal, a ostentação do seu Tempo: o Quinhentos.

 

 

Vivenciando a miserabilidade mas não a tomando como sua, ou vendo a opulência e dela não tirando proveitos críticos, Luis Vaz de Camões veio a se conhecer humanista quando Portugal era Nada sob o pó d'África e era d'Espanha... quando, já consagrado autor d'Os Lusíadas, se foi amortalhado na miserabilidade de um ambiente dengoso e egoísta mas no qual ainda (e por isso mesmo...) bebia

 

 

a celebração de Portugal!

 

 


  

 

01- Mosteiro da Batalha

02- Em 1500, a Noite dividia-se em 3 Quartos: Vigia, Modôrra e Alva. Cada Quarto compreendia 8 Relógios (ou

Ampulhetas) de 1/2 Hora

03- Universidade de Coimbra

04- FREI BENTO - Frei Bento de Camões, tio do poeta e bibliotecário da UC

05- VAZ DE CAMÕES, Simão - pai do poeta, era originário de uma família fidalga da Galiza (norte de Espanha)

06- A Idade do mundo após o nascimento de Jesus e que vai até o final dos tempos (se outra não fôr inventada)

07- Na época, combater pelo Rei (fosse qual fosse o motivo) era uma Honra suprema

08- OS LUSÍADAS - edição comentada por Manuel de Faria e Sousa (Madrid, 1639)

09- BARCELLOS, João - in SONHO, poema escrito em Casablanca, 1973, e publicadona revista OFICINA

POESIA (Ed. Letras & Artes, Rio de Janeiro - 1989)

10- BARCELLOS, João - in FOZ, poema escrito em Coimbra, 1975, editado na mesma revista

11- OS LUSÍADAS - 1º Ediç., Lisboa-1572

12- Camões participou de expedições militares (salteos) em Goa, Malabar, Mar Vermelho, Golfo Pérsico, Macau

13- BOCAGE - Manoel L'Hendroux Barbosa du (1765-1805)

14- Roteiro de Viagem de Vasco da Gama, de Álvaro Velho; Carta de Caminha; A Verdadeira Informação Do

Preste João Das Índias (1540), de Pe Francisco Álvares; Corografia (1561), de Gaspar Barreiros, e outros

15- PESSOA, Fernando - (1888-1935)

16- MENSAGEM - poema épico/espiritual de Fernando Pessoa (1934, Lisboa). Ref: Mar Português

17- BARCELLOS, João - in Os Descobrimentos - Alguns Aspectos De Uma Viagem Psicológica Pegando

Em D'Olivet (Prêmio Pedro Álvares Cabral, de ensaio - Brasil, 1990)

18- DALILA, Dalila Teles Veras - in Madeira - Do Vinho À Saudade (Cad. Cadernos Ilha N º3, Madeira/1989)

Ref: poema Paisagem

19- in História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente chamamos Brasil (Lisboa, 1576)

20- in História Concisa da Literatura Brasileira (3ª Ediç.. Cultrix, 1987)


Volta para João Barcellos Idealizado por:
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Atualizado em: 18 September, 2000