b a r

dois mundos

teatro

 

peça em um ato

lembrando tordesilhas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BAR DOIS MUNDOS

 

sinopse

 

 

 

 

O tratado diplomático, de 1894, visto à luz de hoje com

a diplomacia da sobrevivência e da rebeldia (quase) obscena

dos poetas que fazem do quotidiano

um Oráculo maior.

Após a Questão Tordesilhas a História trouxe(-nos) a

 

Questão Yalta e, no pós-URSS, existem povos na demanda

de suas raizes dispersas (e em alguns casos,

quase aniquiladas!) comprovando o cenário bélico-religioso do Séc. XV,

sob o domínio luso-castelhano e a benção do Papado romano.

Em plena Avenida Paulista (no coração de um mundo

de esperanças denominado Brasil), o Ano 94 do Novecentos

recebe o legado da estória cozinhada em Tordesilhas

como sinal renovado de uma Humanidade perdida em si mesma.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O som do trânsito invade o ambiente do bar,

na parte central da Avenida Paulista, em São Paulo-Brasil.

É o BAR DOIS MUNDOS, que além do balcão

tem uma mesa com cadeiras metálicas; atrásda mesa

um grande mapa-mundi com um risco que o atravessa de alto a baixo

(de pincelada grotesca).

 

Sentados, dois amigos.

Frente a frente, O REPÓRTER (um poeta do instante)

e O VIAJANTE (de mares e terras). Servindo, A DONA do bar.

No mesmo cenário, ao lado do balcão,

 

A CONSCIÊNCIA/ORÁCULO .

 

 

O REPÓRTER veste calça de lã e camisa social; O VIAJANTE veste

camisa e gravata sob um terno de tecido fino - o terno

está largado na cadeira; A DONA veste saia comprida

e larga, blusa de seda e lenço; e A CONSCIÊNCIA/ORÁCULO

uma túnica muito larga e comprida

com enorme cruz malteza estampada na frente.

 

Os dois amigos bebem cerveja.

É um dia de muito calor: um veranico típico do Inverno tropical.

O barulho dos veículos ainda chega alto ao interior

do BAR DOIS MUNDOS.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Junto do balcão (e), A DONA escreve algo num bloco de notas. Súbito, ela deixa o balcão e dirige-se para a porta (d) passando entre a mesa (c) e o mapa-mundi (f)....

 

 

O VIAJANTE (com sorriso malandro) - Meu, e a boneca casa ou não casa?

 

 

O REPÓRTER (bebendo um gole) - Ela é filha de galegos e o noivo é filho de portugueses. Depois, ela vai servir a quem?! Ah... Ainda temos destes problemas. Bom, acho que dali não sai casório, não.

 

 

O VIAJANTE soltando uma gargalhada) - ... Já não tem dessa, meu!

 

 

O REPÓRTER - Isso é o que você pensa. Ela não é Camargo nem ele é Pires, mas... mais depressa vai correr corno do que ocorrer proclama na porta da igreja!

 

 

O VIAJANTE - Eh, portuga gosta mesmo é d’amassar, sempre em busca de outro tesouro, outra aventura!

 

Os dois amigos riem em meio ao barulho que parece fazer aumentar o calor. O VIAJANTE afrouxa a gravata e O REPÓRTER arregaça as mangas da camisa, enquanto A DONA retorna...

 

 

A DONA (entrando com sacolas e garrafas) - Está um calor dos infernos neste Inverno doido. Mas o que está em alta mesmo (pára junto da mesa) é o preço das coisas, que com o caloir posso eu muito bem!

 

 

O REPÓRTER - Desde que você não repasse pra gente...

 

 

O VIAJANTE - Olhe lá amigona, olhe lá!

 

 

A DONA (com um sorriso de deboche, passa entre a mesa e o mapa-mundi) - Puxa. Vocês, hein. Não estão aqui bebendo uma geladinha no meio da avenida dos dinheiros?! E logo no meio da tarde... Reclamando de barriga cheia, gente!

 

 

O VIAJANTE (enquanto ela arruma os objetos sobre o balcão) - Eh, sempre tem uma avenida entre tudo e todos...

 

 

O REPÓRTER - ... ou um mar salgado!

 

 

O VIAJANTE (observando o traseiro d’A DONA) - Isso depende, nê... (suspira longamente e encara o amigo) Mas essa do mar salgado é interessante. Já lhe ouvi chamar de cabeça-em-véspera-de-enfeite! Mas olhe aqui, cara, a primeira vez que entrei no Bar Dois Mundos e dei de cara com uma bela galega...

 

 

A DONA (volta-se para os dois, as mãos na cintura, olhar duro) - Amigo, amigo!

 

 

 

O VIAJANTE (continuando, meio debochado) - Hum, mas eu insisto. É isso aí, bicho! Dei de cara com uma bela galega e com essa mapa-mundi... Ah (ele aponta para a peça), e nem tinha esse risco ái! Então pensei: por que não dar à casa o nome Tordesilhas?

 

 

A DONA - Quem dá nomes, aqui!, sou eu.

 

 

O REPÓRTER (coçando a cabeça com a mão e) - Ah, ah, ah, ah, ah! Imagine você (olha ostensivamente para A DONA) que é a Rainha Isabel de Castela. Sim. Imagine só. E que o amigo aqui (aponta para O VIAJANTE) é o Rei Fernando; e eu... hum, deixa ver. Isso!... Um cosmógrafo do Rei João de Portugal em visita a Castela. Com esse mapa-mundi aí, sabemos que muita já é conhecida além de Cabo Verde, desde os Fenícios e os Celtas, e talvez de outros povos...

 

Os ruidos do trânsito dão lugar ao barulho das ondas do mar e das gaivotas. A iluminação geral escurece um pouco enquanto os personagens ganham ares senhoriais.

 

 

A DONA (Rainha Isabel) - Saibam todos vós que temos novas de grandes embarcações visitando os povos negros e infiéis nas costas do mar de longo.

 

 

O REPÓRTER (Cosmógrafo) - Sim, é verdade Majestade (faz um salamaleque gracioso). Desde os primeiros anos deste Quatrocentos da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo...

 

 

O VIAJANTE (Rei Fernando) - (alvoroçado, a mão d no peito) Dizéis vós, ó sábio, desde os primeiros anos?!

 

 

O REPÓRTER (Cosmógrafo) - (parecendo contente com a desorientação do Rei Fernando) Vossa Alteza, meu Senhor, sabe que a nossa Lisboa é hoje um porto - ou talvez melhor: uma praça da sabedoria do Ocidente; uma janela de Cristo para o mundo que, afinal, não é quadrado, e sim igualzinho a uma bola de trapos (descreve com as mãos uma esfera sob o olhar gracioso da Rainha Isabel). Quando o Infante Dom Henrique concebeu as viagens marítimas já em Sagres ele sabia, por mercadores que chegavam e chegam dos desertos e dos mares próximos, que grandes navios do Oriente estiveram no Ceilão, na Java, lá em Ormuz e no Mogadixo - Ah, Sereníssima Alteza, embarcações bem arrematadas e com milhares de homens no bojo! - com o fim, Altezas... de "unir os mares e os continentes". Disseram ser do Celeste Império. Mas no Ano 24 foram abolidas (estranhando o semblante novamente confuso do Rei Fernando), sim, no 24 deste Quatrocentos foram abolidas as viagens no mar de longo e as artes náuticas que, sabemos, servem agora a fins exclusivamente internos do Celeste Império. O meu amigo Infante Dom Henrique, grão mestre da Ordem de Cristo e um Templário por excelência retomou, digo assim, a odisséia das gentes do Oriente e estudou as rotas de Fenícios e outros povos célticos. Sim, mas é só estudo, é só projeção, saibam Vossas Altezas.

 

 

A DONA (Rainha Isabel) - Ah, é só estudo...!?

 

 

O REPÓRTER (Cosmógrafo) - (passando a mão e pelo rosto para disfarçar um riso quase em explosão) ...Sim, é só estudo... como disse a Vossa Graça!

 

Todos se entreolham no meio de uma mais do que clara farsa diplomática. Os Reis castelhanos, graves, oram juntos, e o Cosmógrafo de Dom João de Portugal sorri diante da cena.

 

Diminui, em súbito ato, a luz no C e o foco ilumina, com filtro azul, A CONSCIÊNCIA/ORÁCULO na E; terminam os sons do mar que se faziam ouvir em surdina.

 

 

 

 

A CONSCIÊNCIA/ORÁCULO (com voz grave) -

 

 

 

nesta Terra

em cujos rios matamos a sede

e pescamos nos mares para matar a fome

 

nesta Terra

em que foi erguida a Pirâmide

buscamos agora em toda a parte um nome

 

 

 

 

A DONA (Rainha Isabel) - (enquanto o foco deixa E e retorna para C, ela retoca os cabelos com ambas as mãos; retorna o som do mar) Saibam todos vós que algo me inspira para apoiar as viagens nesse mar de longo. Depois de termos derrotado os infiéis mouros no belo troféu que é Granada, sei que além-mar está, também, o Destino ibérico.

 

 

O VIAJANTE (Rei Fernando) - Estais mui certa, Majestade, amada minha! Creio também que a sorte da Península Ibérica está lançada. Acertamos com o genovês Colombo, mas sabemos que o Rei Dom João de Portugal tem mais capitães que o podem servir. Nossa empresa será dura. E tanto é assim que o Vaticano vê Portugal com olhos bons... desde Eugênio 4º, Nicolau 5º, Martinho 5º, Calixto 3º e Sixto 6º...!

 

 

O REPÓRTER (Cosmógrafo) - Falais sabiamente, ó grande e mui amada Rainha (faz novo e gracioso salamaleque após dar um passo ficando mais próximo dela). É a sorte ibérica e da Cristandade que está em jogo. Ora, poderemos chegar a um acordo com o Papa e dividir as terras - pois, as conquistadas e todas as outras por descobrir. Felizmente que o Celeste Império terminou com as suas expedições de costa a costa pela África. Nem quero imaginar o que seria de nós diante de povo marujo tão guerreiro e tão sofisticado e que tem por Deus mui deuses por nós desconhecidos...! Ora, um pacto entre nós, com a benção do Papado romano...

 

 

 

A DONA (Rainha Isabel) - (com um sorriso maroto de cobiça e poder) Eis um caso a ser mui bem pensado com os nossos nobres da Ciência e do Clero. (voltando-se para o Rei Fernando) A ser estudado com muito carinho, meu Rei e Esposo mui amado. Ah, um sábio é sempre um sábio. Agradeço-vos a idéia nobre cosmógrafo da terra irmã. Mas, dizéi-me: por que tanto interesse d’O Homem, o nosso querido Rei João, no além-mar?

 

 

O REPÓRTER (Cosmógrafo) - Saiba, Alteza, que temos sangue de tudo quanto é povo marítimo e desbravador - inclusive o Vosso!, desde o Celta ao Fenício, do Grego ao Atlante pasando pelo Romano e o Lusitano e o Árabe. De certa maneira, Nós, Os Portugueses (ele enfatiza gravemente esta parte), por ação devota de Dom Afonso Henriques - o Rei primeiro, cumprimos um Destino continuando as sagas daqueles povos antigos. E ao que sei do Rei João, meu mui querido e amado Senhor, com a graça de Deus, tudo é só estudo!

 

 

A DONA (Rainha Isabel) - Ah, é só estudo...

 

Todos caem num riso francamente diplomático durante quase um minuto e, enquanto isso, o foco ilumina E.

 

 

A CONSCIÊNCIA/ORÁCULO -

 

 

nesta busca do próprio nome

vão os povos erguer pela vergonha uma parede

e dizer que é sua a Terra

 

 

O foco deixa, lentamente, o espaço E e retorna, no mesmo vagar, para C, quando o som da Avenida Paulista faz-se ouvir novamente.

 

 

O REPÓRTER (bebendo cerveja) - Interessante. Lendo as notícias de hoje sobre as guerras na Europa...hum, 500 anos depois de Tordesilhas, e aqui na tropicalíssima Avenida Paulista!, sinto-me viajar e compreender esses povos que ora lutam pelas suas nacionalidades desde há tantos séculos esmagadas, sim, primeiro pelos interesses dos bispos do Vaticano e suas Cruzadas sangrentas, depois, pela hegemonia de lusos e castelhanos, e depois... Ah (ele abre os braços), vejam só, pelos pactos de Varsóvia, da OTAN e de Yalta, sem esquecer o Novo Mundo do Ouro Negro que faz dos árabes um novo Poder, lá no Golfo! Eh, neste Novecentos os árabes ergueram no Oriente mais um império a par do Estado de Israel mas esquecendo a Palestina, e tudo sob a batuta diplomática do Ocidente!

 

 

A DONA - Bom, se é certo que em tudo a ideologia ocidental mostra-se soberana, não podemos esquecer que da Índia saíu toda a Cultura e parte das Ciências que instruiram o Ocidente; e que já no nosso tempo, um capitão do deserto chamado Kadhafi derrotou essa ideologia na Líbia, e que, paralelamente (em Tã’if, onde refugiou-se o profeta Maomé, lá na Arábia) era fundada a organização dos países que possuem aquele tal de ouro negro: o petróleo. O nariz empinado do Ocidente levou um murro violento...

 

 

O REPÓRTER - Tem razão. Vocês sabem que foi descoberta na antiga Babilônia uma placa com um teorema inscrito? Coisa muito anterior aos sábios gregos. E esse teorema é conhecido por nós como Teorema de Pitágoras!... Hoje sabemos que a Cultura no Oriente era influenciada pelo Saber hindu, e que daí saiu a estrutura social do Ocidente cristão.

 

 

A DONA - Mas falemos de Yalta, gente. Sim, Yalta. Pensavam vocês que eu seria analfabeta política, nê?! Um rabo de saia como tantos outros que passeiam por aí. Não. Cursei até o terceiro ano de Direito mas tive de abandonar pra trabalhar, pra viver, e agora sou a dona do Bar Dois Mundos. E adiante, cavalheiros, que estamos na sofisticadérrima Avenida Paulista. Bom, se Tordesilhas dividiu o mundo em dois, lá no Quatrocentos, Yalta é a Tordesilhas do Novecentos: instalou a miséria por toda a parte e deu aos americanos do norte o diploma de potência número um do Ocidente. E isto sem ser anti-americana, tá... Tudo por culpa da covardia dos europeus e da geléia diplomática do Vaticano. Bom, querem mais, cavalheiros?

 

 

O VIAJANTE (fazendo um salamaleque com a mão d) - Puxa amiga, você a-r-r-a-s-o-u... O nosso "águia" não iria tão longe e o Kissinger é um falcão inofensivo em suas mãos de falsa arraia-miúda!

 

De pé, os dois amigos batem palmas.

 

 

A DONA - Parem com isso. Parem. Me respeitem, tá. Que falsa arraia-miúda qual nada! O que falei é verdade e tá falado. E já agora, tivemos até brasileiro na divisão do mundo neste Novecentos. Sabem? Pois é, o Aranha foi o tal que votou a favor e fez o maior arraial pró Estado de Israel. Pergunta fundamental: ele não poderia ter feito o mesmo arraial para votar a favor do Estado da Palestina?

 

 

O REPÓRTER (ainda de pé, uma mão na mesa) - Interesses, interesses.

 

 

O VIAJANTE (sentando-se, juntamente com o amigo) - E pra comemorar este nosso comício de mentes abertas ao Saber - digo melhor: encontro ibero-americano, traga mais uma cerveja. Ah, e um copo pra ocê, querida!

 

Antes de pegar a garrafa e o copo, A DONA liga o rádio e um samba carioquíssimo fica solto misturando-se com os ruidos do trânsito paulista.

 

 

O VIAJANTE (aproximando o rosto do amigo) - Estou observando que a amiga aí tá olhando você com algum interesse. Hum, certo que o portuga já amassou aquele corpinho de galega dos campos verdejantes, mas vai morrer na beirinha do rio. Ah, ah, ah, ela está gostando mesmo é aí do poetinha...

 

 

A DONA (que parece ter escutado algo) - Não estou gostando dessa prosa d’ouvido, aí, gente. (ela encara O VIAJANTE). Ora, seu viramundo dos rabos de saia!

 

 

O VIAJANTE - Ôba!

 

 

A DONA (aproximando-se e pondo a garrafa e o copo na mesa) - Cheguei. Agora podem falar. Ah, ainda temos um tempinho pra deitar conversa fora antes que chegue o pessoal dos escritórios, esses ratos d’ar condicionado.

 

 

O VIAJANTE (enquanto O REPÓRTER solta uma gargalhada) - Voltando atrás na conversa... Amiga, frequento o Bar Dois Mundos desde que abriu as portas e só agora soube que você cursou Direito. Ora, nem sou tão interesseiro assim!

 

 

O REPÓRTER - Calma, gente. Temos em comum o espírito aberto para a compreensão do mundo. Vivemos cada momento renascendo para dar vivas à Vida. Nós somos a diferença nesta avenida dos horrores da massificação, mas não caímos na tentação da oposição pôdre e mítica. Somos a poesia, vivemos o belo do dia a dia. Queremos mais o quê?

 

 

A DONA (pondo a mão e no braço d’O REPÓRTER e sorrindo) - Está certo, amigo poeta. Mas você tem que se cuidar, tá. Este cara aqui (ela olha para O VIAJANTE) leva você pro inferno e inda cobra a ida!

 

Riem. O VIAJANTE pega num banco metálico atrás do balcão e dá para A DONA. Ela senta-se de costas para o mapa-mundi bebendo um gole de cerveja.

 

 

O VIAJANTE - Vivo no mundo cretino dos dinheiros e da agiotagem assassina. Sou um mercador, mas até agora prezo-me de ter feito a minha vida segundo a vontade própria. O que é importante, amiga. Ah, e não gosto de saias. Gosto do que elas escondem, tá!

 

 

O REPÓRTER + A DONA (em coro improvisado no meio do riso) - Hum, que cheirinho de malandragem...

 

 

A DONA (ainda rindo) - Estavamos falando de Tordesilhas...

 

 

O REPÓRTER - Sim, aquele buraco de onde saíu o Poder e a Miséria dos portugueses. Coisa tão bem urdida por castelhanos, ingleses e holandeses! Eh, e antes de todos esses, um Papa dos bórgias espanhóis!

 

Na frase Papa dos bórgias espanhóis ouve-se uma caixa em toque bélico, quase em surdina; o foco ilumina E.

 

 

A CONSCIÊNCIA/ORÁCULO -

 

 

dos lusos que tantos povos são

vai ser o mundo

e o umbigo os aguardará no Fado encoberto

 

dos lusos que tantos povos são

sairá a Fé e um novo falar para o Mundo

que os castelhanos têm por seu e certo

 

em Tordesilhas se firma o acerto

dos Mundos dando um nó imundo

nos lusos que tantos povos ainda serão

 

 

A caixa continua a rufar. O foco abandona E e a luz geral encontra um personagem (O REPÓRTER) em pé. Misturam-se, por instantes (em 5" desaparece a caixa), os sons da caixa, do samba (no rádio) e do trânsito.

 

 

 

O REPÓRTER (em pé) - Sei que o mundo de nós, a Terra, é coisa e é Nada na imensidão do Todo que nos faz Vida, particularmente entre a renovável e limpa Biomassa. Será que os bispos de Roma vingaram-se de Dom Afonso Henriques, de Portugal o Rei Primeiro, e das suas bagunças contra as safadas Bulas bispais? Ou será que o Mundo Além-de-Nós fez de Tordesilhas uma mensagem contra a altivez e os preconceitos de muitos reis que tornaram Portugal um chão de sangues e misérias? Esse mesmo chão que muitos abandonaram no Quinhentos para se aventurarem na Insulla Brazil - o santo e novo Portugal... (desaparece o som do trânsito mas fica o do samba) Sei que a Ilha, que na verdade não o era mas sim a vastíssima e rica terra-do-meio-mundo, tão conhecida d’O Homem que foi El-Rei Dom João e de alguns dos seus capitães-de-mar, foi tida (mas creio que não achada por isso) como o lugar onde os Cruzados poderiam encontrar o Santo Graal - mas, confundiram a terra dos papagaios com a Atlântida; por isso, aqui apareceram lusos, castelhanos, bascos, alemães, galegos, holandeses, franceses... A subida da Serra do Mar e a experiência do velho João Ramalho mostraram a todos que o novo chão exigia tanto sacrifício quanto as lavouras dos rincões d’Europa. Mas, como escreveria Caminha..., em se plantando tudo dá. A cobiça pela Índia fez os portugueses esquecerem a Ilha a que deram (copiando de mapa antigo) o nome Brazil. O esforço de povoamento no Brasil foi uma loucura - e o Povo, lá na terrinha, sofria com a miséria enquanto os fidalgos enriqueciam e ganhavam capitanias hereditárias além-mar. Não demoraria para que Portugal retornasse ao seu umbigo ibérico para viver na sombra de um Império que nos deixou a Língua como sinal de um tempo único.

 

(Ele caminha pelo cenário em passos lentos, gestos redondos que acompanham as últimas frases. Sai o samba e retorno o som da caixa quando o personagem se fixa na D não muito longe do C.)

 

Na verdade, ontem em Tordesilhas como depois em Yalta, hoje na Bósnia e na Croácia, ou lá pelo Golfo dos "petrodólares" e do Islã, vivemos dois mundos à luz de um copo de sangue no bar que o Bem e o Mal frequentam com assiduidade... (aponta para o mapa-mundi com a mão e e sorri, com ironia) Bonita esta coisa aqui, nê. Mas é tudo falso. Só será verdadeiro quando cada Povo espezinhado pelas vis ideologias do Poder a qualquer custo quase sempre abençoado pelas Igrejas - o que não quer dizer por Deus...- tiver o direito de ser Ele mesmo diante da Humanidade que representa. (ele enfia as mãos nos bolsos; está fixo na D, olha durantes uns instantes para a platéia, depois caminha para C e senta-se. Ouve-se o som do trânsito) Eis-nos aqui, filosofando talvez, dizendo poesia do instante em nome da Liberdade, mas verdadeiros, porque não esquecemos que somos parte desse Todo fragilizado que é a Humanidade. Aqui, nesta chiquérrima Avenida Paulista, que espelha a riqueza e a pobreza do Novo Mundo tão projetado em Tordesilhas, há 500 Anos, somos mais gente porque somos diferentes, porque permitimos que a nossa espiritualidade respire no respirar da Biomassa que nos é chão!

 

 

O VIAJANTE (sentando-se melhor, ajeitando-se, e cruzando os braços) - É certo. É certo. Vejam: quando estive no Egito, um velho religioso explicou pra mim que a maior das pirâmides, a perfeita, foi construida sob a beção energética do Sol - benção divina respeitada pelos antigos, enquanto que as outras (vejam só!) são imitações baratas e estúpidas daqueles que quiseram "ser" Sabedoria. Assim, também é possível que Tordesilhas tivesse sido um campo de confrontação para as idéias mercantis dos bispos e dos reis ávidos de Poder, embora muitos cartógrafos e cosmógrafos (a maioria formada pela Sabedoria de árabes e hindus) acreditassem que o Bem estava presente naquele 7 de Junho de 1494.

 

 

O REPÓRTER - Eh, tanto que a parte do Oriente, segundo a Linha divisória das 370 Milhas a oeste de Cabo Verde ficou com Portugal! E com isso a luxuriosa e enigmática Insulla Brazil. Para os portugueses ficou a lição da História. Pelo que, talvez, o seu Destino esteja ainda por cumprir-se, com ou sem Brasil! Vejam como muitas etnias, outrora colonizadas, estão em luta pelas suas cidadanias e nacionalidades em toda a Europa!

 

 

A DONA - Olhem, mesmo sem o saberem, os caras que numa madrugada entraram no Bar Dois Mundos pra roubarem e bagunçarem deixaram esse risco no mapa-mundi (ela aponta para a peça) e, por causa do risco, estamos conversando e fazendo História - ou, no melhor dos termos gregos, poetando!

 

 

O VIAJANTE (como que pensando alto) - Um risco. Um risco..., dois mundos...

 

Os personagens chamam novamente a si os momentos da Corte castelhana de 1494. A maresia toma conta do ambiente enquanto a luz geral diminui.

 

 

A DONA (Rainha Isabel) - ... um risco. Um traço mental. Uma idéia. Sabei vós que com um risco, uma Bula, um Sinal de dedo em tinta ou lacre, poderemos mesmo dividir o Mundo em Dois Mundos. Brilhante idéia, ó sábio cosmógrafo!

 

 

O VIAJANTE (Rei Fernando) - Amada minha, Senhora, após Granada tudo nos é e será possível. (sussurrando para ela) Até eleger um Papa. Um Papa que possa fazer esse rabisco. Eh, esse sábio cosmógrafo do Rei João é um diplomata. (enquanto isso, o cosmógrafo tenta ouvir algo daquela conversa em surdina) Ora, vamos então deixá-lo pensar que muito nos interessa celebrar um acordo com Portugal. Tudo em banho-maria, Senhora minha mui amada, até termos um Papa castelhano. Vamos ter muito cuidado nos bastidores, sabei que Portugal tem na manga um bispo-sábio muito requisitado e que até pode ser eleito...

 

 

A DONA (Rainha Isabel) - (continuando a conversa ao pé d’ouvido) Sei que Rodrigo, cabeça dos Bórgia, pode ser eleito Papa contra essa bispo-sábio português. Muito bem, após tomar posse como Papa daremos aos filhos de Roderigo (ah, amado meu, como Papa ele se chamará Alexandre)... dizia, daremos a seus filhos, César e Pedro, bispados em nosso reino. Hum, hum, hum (sorri ela com maravilhosa e delicada safadeza), não vamos precisar nem de caravelas nem de canhões, o rabisco papal é Lei!

 

O som do mar e das gaivotas surge no ambiente, leve, e ao final da frase "o rabisco papal é Lei!" o foco ilumina E)

 

 

A CONSCIÊNCIA/ORÁCULO -

 

a cruz escarlate

nas velas enfunadas

diz nos mares a arte

das gentes ousadas

 

o temporal poder das coisas embuçadas

não mata o Destino que parte

 

 

 

 

O REPÓRTER (Cosmógrafo) - (pensando com seus botões enquanto os reis continuam segredando) Pensam estes dois que vão ficar com os ganhos do esforço de Portugal, pois. Ora essa... Já mandaram corsários para a costa d’África, já assaltam nossas caravelas, ah, ah, ai... e pensam, ah, pensam ainda, que Colombo esteve nas Índias. Bem, é deixá-los assim pensar.Mas têm eles influências muitas e riquezas investidas no meio da diplomacia da padralhada romana no Vaticano, e aí, sim, longe d’El Hombre, como fala Isabel, podem até fazer algo... No entanto, Colombo acha que uma Linha Imaginária a partir de Cabo Verde (e foi o que conseguiu meter na cabeça da Rainha Isabel) vai facilitar a partilha das descobertas marítimas e do que há por descobrir sonegando partes a Portugal!

 

(voltando-se para os reis, e inclinando-se cerimoniosamente, fala alto e cortês)

 

Vossas Majestades perdoem a minha ousadia...

 

 

A DONA (Rainha Isabel) - Dizei, dizei, ó sábio cosmógrafo!

 

 

O REPÓRTER (Cosmógrafo) - Pressinto, Majestades, que em breve haveremos Papa, e desta feita sob os auspícios de Castela. Ora, se o novo e santo Papa concordar com aquela idéia de Colombo - aquela sobre uma tal Linha Imaginária - até eu assinarei tal documento em nome do meu Amo e Rei, Senhor de Portugal e dos Algarves.

 

 

O VIAJANTE (Rei Fernando) - (batendo palmas delicadamente; ouve-se agora, nitidamente, o som das ondas do mar em rebentação) Que belas e graves palavras as vossas, ó sábio cosmógrafo. Sem dúvida, os novos ventos mundanos de Lisboa te iluminam. Palavras que me parecem saídas das profundezas do mar imenso. Ide, ó sábio cosmógrafo, e dizei a nosso irmão, o Rei João, a vossa idéia!

 

O foco ilumina E.

 

 

A CONSCIÊNCIA/ORÁCULO -

 

 

venderam jóias e deram cargos

elegeram Papa mas não tinham a Fé lusa

do arrojado labor nem dos fardos

não sabiam da espiritual aventura

 

em nome de Cristo e que tampouco perdura

no Tempo a falsa identidade dos corpos

 

 

O foco fecha lentamente sobre a Cruz Escarlate da túnica enquanto a luz geral retorna ao C .

 

 

O VIAJANTE (Rei Fernando) - Fecharemos um acordo com base nas atribuições da Ordem da Cruz de Cristo, cujo grão-mestre é nosso irmão Rei João, segundo de Portugal. Que dizéis, amada minha e Senhora?

 

 

A DONA (Rainha Isabel) - Enquanto falavas, Esposo meu e Rei, estava eu recordando que só existe um lugar para celebrar um acordo tão importante para nós e o Vaticano: a mui leal e hispânica Tordesilhas.

 

 

O VIAJANTE (Rei Fernando) - (ajoelhando-se, beijando a ponta dos dedos da mão e da rainha) Bravo! Bravíssimo, amada minha. Bravíssimo!

 

 

O REPÓRTER (Cosmógrafo) - (pensando com os seus botões) Estão tramando contra meu amigo Dom João, eu sei, mas eles não sabem que a Linha Imaginária é um truque nosso que fez delirar Colombo. Ah, meu amigo Senhor Dom João, como foste sábio... A diplomacia do segredo d’Estado vai tornar tão eterna quanto estéril essa Linha Imaginária. Ah, se vai...!

 

(falando alto, respeitoso, para os reis castelhanos)

 

Perdoai de novo a minha ousadia, Majestades. Acho o local, Tordesilhas, um ponto da convergência ibérica geral, e hispânica em particular. Será um honra celebrar ali a idéia de Colombo. Levo a mensagem para meu amado Senhor e deixo-vos na esperança de paz para o mar de longo, Majestades! (curva-se e faz um salamaleque lose se retirando do aposento real)

 

O foco na Cruz Escarlate é desligado. Continua a luz geral no C e o som do mar como fundo.

 

Os personagens retornam à Avenida Paulista.

 

Aos poucos, o barulho do trânsito abafa o som do mar até que este desaparece. Há uma pausa e os três personagens bebem saboreando uma talvez paz.

 

 

O REPÓRTER - Somos capazes de fazer de um determinado lugar a nossa pátria, tal como os nômades sempre voltam aos mesmo e raros oásis: a Terra é um centro espiritual que só a mente aberta do Ser Humano total pode absorver, como a daqueles que construiram a Pirâmide maior, a única. E até aqueles que, sim..., aqueles que sentaram-se em Tordesilhas para dilatarem a Fé cristã e expandirem seus domínios reais. Nesse desbravar, continuado de maneira fantástica por Dias Paes e por Raposo Tavares - quando ambos desconheceram a tal Linha Imaginária e fizeram as fronteiras continentais do atual Brasil -, sempre esteve presente a cega religiosidade dos humanos. Bom, mas esses bandeirantes só poderiam ir mesmo contra Castela: avançar, avançar contra e todos e os mais-do-que-hispânicos Jesuitas... Ah, e em Yalta, hum, em Yalta tudo foi bonito e tudo caíu. Como o Portugal quinhentista e a Castela prepotente. Tudo decadente. Agora, nem a América do Norte é mais a estrela maior do Ocidente. O mundo está um caco só...

 

 

A DONA - Tem razão, poeta. Aliás, seus escritos sobre as fomes - sim que de fomes se trata!- têm tido muito sucesso. A visão do poeta é sempre a visão da contra-Cultura!

 

 

O VIAJANTE (cortando a palavra) - Hum, poeta...

 

 

A DONA - Amigo! Amigo! (ela, meio séria meio rindo) E adiante: você é um Guerreiro Espiritual, caro poeta. Sempre com o sonho na frente. É bonito. O mundo somente na Vontade humana é um Nada. Todos, ou quase todos, não crêem em si mesmos: não fazem o seu Tempo.

 

 

O VIAJANTE - Este instante que vivemos aqui, hoje, na fabulosamente rica Avenida Paulista, o centro material do Brasil e do mundo moderno e especulativo que se relaciona com os brasileiros... (respira fundo, faz uma ligeira pausa) dizia, este instante é possível porque entendemos o nosso próprio Destino lutando pelos significados do Quotidiano em estreita ligação com a biomassa que nos é essência de Vida. Fora disso, amigos, somos mortos-vivos! Ah, ah, ora vejam: aquela Esfinge que os antigos esculpiram lá no Egito é uma pedra falante, sim, cartão-postal da Morte que em nós vive!

 

O foco ilumina E.

 

 

 

 

A CONSCIÊNCIA/ORÁCULO -

 

 

do Oriente vieram os primeiros barcos

iluminados pelo Celeste pensar

retornaram para continuarem o algo-Nação

 

 

do Ocidente enfunaram velas em barcos

havia ideal e havia cobiça nesse navegar

quando retornaram estava em miséria a Nação

 

depois de Tordesilhas e d’Yalta abre o coração

ó Humanidade! e vê a Luz em ti raiar

 

 

No início do último verso ouve-se a caixa que anuncia a Paz e não a Guerra; o som do trânsito baixa um pouco. A DONA passeia por todo o cenário (durante uns segundos) até que o som da caixa cessa quando ela imobiliza-se em D.

 

 

A DONA - Quando imaginei (fala com os olhos observando as mãos abertas a meio palmo do peito) este Bar Dois Mundos tinha em mente que, apesar da bestialidade animal que nos rodeia, é possível construir a Vida pacificamente.

 

 

O REPÓRTER (levanta-se, com ambas as mãos segura a e d’A DONA) - Você é linda...

 

 

O VIAJANTE (em surdina, olhando para os dois) - Ih!...

 

 

O REPÓRTER (continuando) - ...como foi Isabel, a de Castela. Mas você é mais linda por pensar assim, em Liberdade.

 

 

A DONA (comovida) - Muito agradecida, poeta! (deixa que ele a mão e ficam assim unidos por instantes)

 

 

O VIAJANTE (entre um risinho malandro) - Eh, a Liberdade flui como o Amor. É outra avenida. De um lado há um vento que traz e não-traz sementes, de outro a maresia de sempre arrastando a asa do Destino mesmo quando o Mundo é uma lâmina de duplos efeitos. O sábio Fabre d’Olivet escreveu que os Reis Católicos, Isabel e Fernando, só o foram para ganharem influência no Vaticano - ora, e como Isabel chamava o português Dom João de El Hombre!, eis que talvez ali estivesse uma paixão escondida; bom, o certo é que esses reis em vez de irem pela maresia vivificadora deixaram-se ir no vento da circunstância política. O que, ao que vejo

 

(abre os braços e sorri para o par de mãos dadas)

 

não é o que corre por aqui: aqui flui o Amor, a Liberdade. Que na viagem dos vossos espíritos o nosso Mundo possa entender que ainda existe Tempo para dizer não à débil Vontade humana que não sabe de si mas quer mandar, dominar, mandar, dominar... sem aprender a Ser e a Estar pela criatividade da Vida!

 

O som do mar e das gaivotas torna ao ambiente de mistura com o do trânsito. O foco ilumina E. Escurece em C.

 

 

 

 

 

A CONSCIÊNCIA/ORÁCULO -

 

 

há uma Luz que arde

em nós mas com Ela não sabemos

lidar embora nunca seja tarde

para aprendermos n’Ela o que devemos

 

beijemos o chão da Terra e orgulhemos

os nossos com o abraço d’Amizade

 

 

O som da maresia é mais forte a partir dos dois últimos versos. A luz geral extingue-se lentamente.

 

 

 

 

 

 

 

João Barcellos, 1994