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Ai, esta minha Justiça! por João Barcellos
Ao terminar um estudo sobre a Questão Tiradentes - aliás, com este mesmo título -, lembrei-me que o Direito Romano chegou ao Brasil embasando a bestialidade punitiva quer das Ordenações Afonsinas (continuadas pelas Filipinas) quer da Santa Inquisição. Pior: tal jurisprudência medievalesca ainda é suporte, em alguns casos, do Código Penal brasileiro. Quero com isto dizer que (e o que sei é pelo convívio próximo com magistrados, advogados, e com a própria História) ainda hoje, no Brasil, qualquer impecilho aos propósitos individuais de alguém é tratado com processo lavrado para lavar a honra...
Se você, (e)Leitor(a), tem alguma crítica a fazer à Municipalidade e acha que chamar a atenção da mesma pela Imprensa é um bom caminho, saiba que logo-logo a mesma Municipalidade estará processando você. O mesmo acontece com instituições privadas que, vivendo realmente às custas do erário público (por não terem recursos próprios), acham, por ex., que Educação Especial deve ser tratada como caridade, ou que a Cultura é meio para intenções político-eleitorais e não artístico-intelectuais - e, quando criticadas pedagógica e socialmente, vêem no tal processo lavrado para lavar a honra a possível saída legal para a questão. Também, aqueles e aquelas que se julgam no direito de processar alguém tendo por detrás o embasamento administrativo de uma Municipalidade. Este tipo de processo corre como caudal dágua em muitas Comarcas e só concorre para atrapalhar a já obesa máquina judicial. E isto acontece porque as pessoas que se dizem a "nata" da Sociedade raramente têm a ousadia de sair a campo editorial para desmentirem este ou aquele caso na própria Imprensa..., preferem o estilo "bandeirante" (que o mesmo é dizer: coronelístico). No entanto, quer na Justiça quer na Imprensa, têm de provar o que fazem e como o fazem ética e profissionalmente, pois, não existe saída legal para a incompetência!
O pensamento das élites está calcado - talvez que o melhor seja dizer "calçado"- naquilo que o cancioneiro de Garcia de Rezende, do Séc. 16, enuncia(va): "Ouve, vê e cala/ e viverás vida folgada". E se ontem, em dado momento histórico, acabaram enforcando, esquartejando e salgando Tiradentes, por opôr-se precisamente a tal conceito anti-Cidadania, hoje continuam a conspirar contra as pessoas e contra a Imprensa livre e democraticamente editada.
Voltemos à História: aquelas velhas Ordenações com as quais os reis e rainhas de Portugal assinavam os atos punitivos contra hereges e cidadãos tornados "não gratos" ao regime, serviram muito bem ao Estado Novo, quer o salazarista (em Portugal) quer o getulista (no Brasil) - mas, se em Portugal se fez já uma revisão jurídica, no Brasil ainda é preciso uma reforma total no sistema. Ora, deste ranço medievalesco, as sociedades modernas retira(ra)m aquela lição de estupidez assumida pela qual se diz "fazer do torto, direito/ e a quem tem direito, torto" (do cancioneiro minho-galaico medieval) - i.e., se posso ter a Justiça por e comigo por que não fazê-lo? A questão é o contexto jurídico de tal pensamento que, em geral (e pode-se interpretá-lo como "Ai, esta minha Justiça!"), vale para os regimes ditatoriais, não para os regimes democráticos..., embora seja isto o que está a acontecer, de fato. Qualquer um(a) julga-se no direito de fazer da Justiça algo "seu", misturando Cidadania e questão doméstica sem discernir no ato pessoal o quanto pode prejudicar a Democracia.
Eis que a Sociedade Brasileira está diante de um desafio social, cultural e jurídico gigantesco, uma vez que, para começar, terá de remover esse ranço medieval que embasa as élites em todos os níveis. (João Barcellos - escritor, consultor cultural; jb@cotianet.com.br)
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